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A estranha vida de quem mora em um “buraco negro” de IPs

Joyce Taylor Vogelman é uma senhora de 82 anos que vive em uma fazenda no meio do estado norte-americano do Kansas. Um dia ela acordou e tinha uma privada quebrada largada no meio da estradinha que leva para sua propriedade.

Vogelman e as pessoas para quem ela costuma alugar a propriedade rural nunca descobriram o motivo daquele estranho objeto abandonado no caminho ou a identidade do visitante noturno. Mas sabem que o caso está relacionado a uma longa série de aborrecimentos que já levaram a polícia para sua porta, ambulâncias, estranhos tomados de irritação, curiosos, fiscais da Receita e até agentes do FBI.

A fazenda Vogelman estava em um “buraco negro” de IPs.

toilet-in-drivewayPor um erro crasso de avaliação, as coordenadas geográficas da fazenda foram durante anos o suposto endereço físico atribuído a nada menos que 620 milhões de endereços IP nos Estados Unidos. Se não fosse uma reportagem publicada pelo site Fusion, o problema permaneceria sem solução por mais alguns anos. E talvez permaneça assim mesmo.

Mapa do equívoco

Para entender essa história é preciso entender o que são números IP. A grosso modo é uma sequência de números atribuída a qualquer dispositivo conectado a uma rede, inclusive à internet. Cada servidor da web tem um número IP, que funciona como seu endereço para que seu navegador consiga localizá-lo entre os milhões e milhões de máquinas ligadas entre si na internet. Alguns endereços são fixos e imutáveis, outros são transitórios e alguns são até compartilhados com mais de um dispositivo: ou seja, atribuir um endereço IP a uma determinada atividade, como, digamos, pirataria, é uma tarefa literalmente impossível, ainda que alguns tribunais tenham aceito isso como prova em processos.

Mas o problema se amplia quando se tenta ligar um número IP a uma localização física. Existem diferentes métodos para se tentar isso, nenhum deles 100% confiável. Mas esse Cálice Sagrado da identificação vem sendo perseguido por diversas empresas, seja para identificar infratores, seja para distribuir publicidade focada na região de onde o internauta está navegando. Várias firmas se especializaram no serviço, entre elas a MaxMind.

Desde 2002, a MaxMind começou a oferecer uma plataforma de “inteligência de IP” para clientes, tentando fazer uma ligação entre endereços IP e regiões. Em quatorze anos de atividades, a MaxMind conquistou mais de 5.000 empresas que utilizam seu banco de dados para identificar IPs fisicamente. E, durante esses quatorze anos, sempre que seu sistema não conseguia reconhecer a localização de um endereço IP, mas sabia que ele pertencia aos Estados Unidos, ela apontava para uma coordenada localizada no centro geográfico do país.

Mas o que ninguém sabia é que ela apontava para o quintal da fazenda da senhora Vogelman.

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Inferno Eletrônico

Então, sem nenhum vizinho próximo por quase dois quilômetros, próxima a uma cidade de apenas 13 mil habitantes onde todo mundo se conhece pelo nome, com um computador velho conectado à internet mas que quase não usa, a pobre senhora Vogelman e seus inquilinos se viram como o endereço “oficial” de 620 milhões de IPs.

Por anos, tiveram que explicar que não estavam envolvidos em fraudes, em envio de spam, em tráfico de drogas, em sonegação fiscal, em tentativas de suicídio e todo o o tipo de atividade ilegal que alguém em algum lugar realizou usando um endereço IP que a MaxMind não conseguia localizar. Um dos inquilinos teve sua vida totalmente esmiuçada e teve dados privados postados na internet por vigilantes digitais que queriam vingança por algo que não fizeram. Alguém largou uma privada quebrada no caminho da fazenda.

A situação chegou a um ponto que a polícia do condado não tinha mais nada para fazer a não ser responder às polícias do Kansas e do FBI que não havia nada de errado na fazenda, que não havia crianças desaparecidas lá ou celulares roubados. O xerife chegou a colocar uma placa na estrada para afastar os desavisados. Não adiantou. Era inevitável: alguém era prejudicado por outra pessoa, utilizava os serviços de algum dos clientes da MaxMind, como o Facebook, ou o Google, “descobria” o endereço físico que poderia ser a resposta para seus problemas e dirigia-se para lá para resolver o assunto. “Aquela pobre mulher vem sendo incomodada por anos”, desabafou o xerife Kelly Herzet.

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Há outros…

O caso da fazenda Vogelman não é único. Há outros endereços nos Estados Unidos que funcionam como “buracos negros” de IP, dependendo da empresa que presta o serviço de mapeamento físico. Há uma casa em Atlanta que por particularidades do sistema de Wi-Fi se tornou o endereço padrão de um bairro inteiro em um popular aplicativo para encontrar smartphones perdidos ou roubados. Seus ocupantes recebem visitas de pessoas desesperadas a qualquer hora do dia ou mesmo da polícia.

A cidade de Ashburn, no estado norte-americano da Virginia, é uma cidade absolutamente desconhecida. Exceto que hospeda uma grande quantidade de datacenters. Ao todo, Ashburn possui sozinha 17 milhões de IPs. Nos bancos de dados da MaxMind, todos os 17 milhões de IPs apontam para uma única casa, o endereço residencial de um certo Tony Pav.

Pav descobriu que havia algo de errado na sua vida quando encontrou a polícia prestes a arrombar sua porta em busca de um laptop roubado do governo com informações confidenciais. O aparelho estava enviando seu IP. O IP, é claro, estava relacionado à casa de Pav. Ele permitiu que a polícia, que estava com um mandado de busca, entrasse e revistasse tudo. Ele conta que viraram sua casa de ponta a cabeça e não acharam laptop nenhum.

Ele recebe telefonemas revoltados e ameaças pelo Facebook. “Além da humilhação de ter minha casa vasculhada pela polícia, eu tenho preocupações genuínas pela minha segurança se alguém vier diretamente até minha casa por causa desses dados falsos. É como ter um alvo apontado diretamente para você. Eu me sinto sentado em uma bomba-relógio”, lamentou-se.

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Antes tarde do que nunca…

A reportagem da Fusion entrou em contato com Thomas Mather, um dos fundadores da MaxMind. Ele confessou que a localização do “centro dos Estados Unidos” havia sido escolhida havia mais de dez anos e que nunca ninguém na empresa tinha parado para pensar que isso teria alguma repercussão negativa.

“Não nos ocorreu que as pessoas pudessem usar o banco de dados para tentar localizar uma pessoa até o nível de uma casa específica. Nós sempre divulgamos o banco de dados como capaz de determinar uma localização a nível de uma cidade ou um código postal. Até onde eu sei, nós nunca alegamos que nosso banco de dados poderia ser utilizado para localizar uma casa”, admitiu espantado Mather para a reportagem da Fusion.

Dois dias depois da publicação da matéria, a MaxMind alterou todos os endereços padrão que apresentava para um novo “centro dos Estados Unidos”. Desta vez, o banco de dados aponta para o meio de um lago próximo a Wichita, também no Kansas, sem nenhuma residência próxima.

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Mas o próprio Mather é o primeiro a admitir que isso pode não significar o fim do tormento da senhora Vogelman ou de Tony Pav. “Alguns clientes atualizam seus bancos depois de vários meses”, revelou. Alguns especialistas de segurança apontam que esse intervalo na verdade pode ser de anos. Com cinco mil serviços utilizando o banco de dados da MaxMind, o “abismo negro” ainda irá demorar bastante para desaparecer.