Categorias

Computador Quântico é real? O que isso significa para todos nós?

O sonho da computação quântica e sua abertura de horizonte para possibilidades inimagináveis nos persegue há trinta anos, enquanto a computação convencional parece atingir o limite da Lei de Moore e frear nosso avanço tecnológico. Entretanto, nessa semana, o Google alega ter obtido um marco histórico, um feito que sinaliza que o futuro que estávamos aguardando está chegando finalmente.

Pesquisadores de computação do Google afirmamter obtido a chamada “supremacia quântica”, o momento teórico de virada em que um computador quântico consegue na prática realizar uma tarefa que seria impossível para máquinas convencionais. O superchip batizado de Sycamore completou em 200 segundos uma simulação que levaria 10.000 anos para ser calculada no mais veloz supercomputador existente.

Será que essa fronteira foi cruzada? Será que os primeiros frutos da computação quântica no dia a dia estão ao nosso alcance? Há quem rebata o feito da equipe do Google, mas o próprio CEO, Sundar Pichai, defende a “supremacia quântica” e revela as aplicações práticas da tecnologia que podem estar à caminho.

O voo do 14-Bis

Os rumores já estavam circulando havia meses de que o Google teria conseguido quebrar a barreira da supremacia quântica. Um estudo preliminar chegou a ser publicado no site da NASA, em Setembro, antes de ser rapidamente removido. Ainda assim, cópias não-oficiais do artigo foram distribuídas entre pesquisadores da computação quântica.

Porém, era real e a verdade acabou sendo revelada agora através de uma postagem oficial no blog de Inteligência Artificial do Google e um artigo científico publicado na revista Nature.

Para atingir essa meta, foi utilizado um processador de 54-qubit completamente programável batizado de “Sycamore”. O superchip é formado de duas grades bidimensionais em que cada qubit está conectado com outros quatro qubits. De acordo com seus criadores, essa estrutura possibilitou a conectividade necessária para que os estados quânticos dos qubits conseguissem interagir rapidamente ao longo de todo o processador, atingindo um estado de computação que não poderia ser simulado com um computador convencional.

Mas, afinal, o que o Sycamore computou? É preciso entender que o cálculo realizado pelo processador quântico do Google não é revolucionário ou mesmo surpreendente nem tampouco útil. É uma operação projetada do zero com o intuito de demonstrar o poder de máquinas quânticas, uma tarefa propositalmente difícil, para não dizer impossível, para um computador clássico.

Sycamore realizou uma tarefa conhecida como amostragem randômica de circuito. Em termos bastante simplificados, o computador quântico gerou uma sequência de operações randômicas usando qubits. Como explica o cientista de computação Bill Fefferman, da Universidade de Chicago, “é literalmente como se o código de seu programa tivesse sido escolhido aleatoriamente”.

A partir daí, os pesquisadores do Google fizeram a medição dos valores expostos em todos os 54 qubits. Repetindo o processo múltiplas vezes, foi possível obter uma distribuição de números que era extremamente próxima de randômica, desconsiderando-se os efeitos quânticos. É essa distribuição extremamente aleatória que é inatingível de calcular com um computador clássico. De acordo com o time envolvido na pesquisa, o que Sycamore fez foi repetir esse processo de amostragem um milhão de vezes em 200 segundos. O mais poderoso supercomputador existente no planeta precisaria de 10.000 anos para repetir a mesma tarefa, nas mesmas condições.

A princípio, uma coleção de valores randômicos parece uma conquista trivial. Entretanto, conseguir executar uma operação que seria impossível em um computador tradicional configura a “supremacia quântica”, o momento em quem uma máquina quântica supera a tecnologia existente.

Sundar Pichai, CEO do Google, comparou o feito com o voo inicial de alguns poucos metros dos Irmãos Wright. Impulsionados por uma catapulta e ficando no ar por pouquíssimo tempo, eles são considerados os “pais da aviação”, fora do Brasil, ignorando as façanhas de Santos Dummont e seu 14-Bis. Seja Dummont ou os Wright, seus voos inaugurais, ainda que limitados com nossa perspectiva atual, foram fundamentais para provar que era possível colocar um objeto mais pesado que o ar em voo e nos ofereceram o horizonte para a aviação.

“Com a primeira computação quântica que não pode ser razoavelmente emulada por um computador clássico, nós abrimos um novo mundo da computação para ser explorado”, escreveram os pesquisadores  John Martinis e Sergio Boixo do Google. Mais do que atingirem a “supremacia quântica”, os pesquisadores também desafiaram a tese de Church-Turing, um princípio da Ciência da Computação que afirma que todos os tipos de computação podem ser realizados por computadores clássicos. Em outras palavras, aquilo que entendemos como computação, os seus limites anteriores, tudo será alterado.

A grande dúvida é se o experimento do Google funciona tão somente nas condições estabelecidas por seus pesquisadores, se Sycamore na verdade é capaz de exercer uma única função, se tornando o mais caro e exótico gerador de aleatoriedade do planeta. Entretanto, a equipe responsável garante que o experimento é escalável.

Conforme Martinis e Boixo escreveram:

Experimentos anteriores mostraram que a mecânica quântica funciona conforme o esperado até uma dimensão no espaço de estado de cerca de 1000. Aqui, expandimos esse teste para um tamanho de 10 quadrilhões e descobrimos que tudo ainda funciona como esperado. Também testamos a teoria quântica fundamental medindo os erros de portas de dois qubit e descobrindo que isso prediz com precisão os resultados de benchmarking de todos os circuitos de supremacia quântica. Isso mostra que não há física inesperada que possa prejudicar o desempenho do nosso computador quântico. Portanto, nosso experimento fornece evidências de que computadores quânticos mais complexos devem funcionar de acordo com a teoria e nos fazem sentir confiantes em continuar nossos esforços para aumentar a escala.

IBM contra-ataca

A conquista do Google dividiu a comunidade científica. Uma parte dela acredita que esse é começo de um grande futuro, enquanto outra parte acredita que a tal “supremacia quântica” não é uma meta importante e tampouco foi alcançada pelo Google.

A IBM tem uma iniciativa rival de computação quântica, também desenvolveu um processador de 53-qubit, com arquitetura diferente, e está liderando o coro daqueles que discordam do Google. Em um artigo científico publicado através da Universidade de Cornell, seu time de pesquisadores contesta as métricas adotadas no experimento do Sycamore.

Entre as oposições da IBM está o próprio conceito de “supremacia quântica”. A IBM defende o chamado “volume quântico”, um valor que incorpora uma gama muito maior de fatores, incluindo a margem de erro dos qubits e sua estabilidade para manter suas propriedades quânticas. Em outras palavras, não é relevante se um computador quântico consegue realizar uma tarefa impossível para máquinas convencionais, mas sim sua capacidade de funcionar adequadamente. De acordo com a proposta da sua linha de pesquisa, não apenas “supremacia quântica” não é uma meta a ser celebrada, como tampouco o Google a teria atingido.

Segundo a IBM, a exata mesma operação realizada por Sycamore poderia ser realizada sim por computadores tradicionais, usando discos rígidos para auxiliar na tarefa. De acordo com o raciocínio adotado pelo Google, simular um computador quântico exige armazenar vastas quantidades de dados em memória durante o processo, para representar as condições da máquina quântico naquele dado momento, como se fosse um snapshot da operação. Uma vez que há um limite para o volume de memória disponível, a tarefa precisaria ser dividida em múltiplos estágios, o que prolongaria demais a simulação, levando aos dez mil anos calculados pelo Google.

Entretanto, o time de pesquisadores da IBM defende que esse prazo poderia ser teoricamente reduzido para apenas alguns dias. Sycamore e seus 200 segundos ainda sairiam em vantagem na briga, mas não se pode falar em “supremacia quântica” se um computador convencional é capaz de realizar a mesma tarefa.

O método da IBM utiliza simultaneamente discos rígidos e memória para armazenar as informações que precisam ser processadas, além de adotar uma ampla gama de técnicas de otimização simultâneas, tanto no lado do hardware, quanto no lado do software, para acelerar os resultados. Em outras palavras, a IBM afirma que, com boa vontade, dá para fazer o que o Sycamore fez. Ainda assim, é importante ressaltar que o cálculo da contestação é teórico e não foi realizado na prática pela IBM.

Quem também afirma que “supremacia quântica” não deve ser uma meta é o físico quântico Simon Devitt, da Universidade de tecnologia de Sydney, na Austrália. De acordo com o pesquisador, isso não é empolgante. Ainda assim, ele revela que está feliz com os resultados do Google porque apresentam um novo nível de controle sobre os instáveis qubits.

John Preskill, o físico da CalTech que cunhou o termo “computação quântica”, entrou na polêmica com um artigo publicado na revista Quanta. Ali, ele praticamente acusa o Google de trapaça, de ter arquitetado uma tarefa específica que daria vantagem ao seu modelo: “essa computação quântica tem muito pouca estrutura, o que a torna muito difícil para um computador clássico acompanhar, mas também significa que a resposta não é muito informativa”.

O universo é quântico, o futuro é quântico

John Martinis, do Google, se defendeu das críticas, durante uma conferência nessa quarta-feira (23) e afirmou: “no final das contas, esse experimento é sobre construir o mais poderoso computador quântico no mundo agora mesmo e mostrar isso, que as coisas estão funcionando bem”.

Nesse ponto, com ou sem “supremacia quântica”, Martinis está certo. O Sycamore é completamente programável e pode rodar diversos algoritmos quânticos genéricos. E o time de pesquisadores envolvidos em seu desenvolvimento já está trabalhando em aplicações de curto prazo, incluindo simulações quânticas e química quântica, assim como recursos de aprendizado de máquina.

Eufórico, Sundar Pichai, explica o que esse avanço representa para nosso futuro:

A verdadeira empolgação com a computação quântica é que o universo funciona fundamentalmente de maneira quântica, então isso possibilita que você possa entender melhor a natureza. Ainda é cedo, mas onde a mecânica quântica brilha é na capacidade de simular moléculas, processos moleculares e acho que é onde isso será mais forte. A descoberta de drogas é um ótimo exemplo. Ou fertilizantes – o processo Haber produz 2% de emissões de carbono no mundo. Na natureza, o mesmo processo é realizado com mais eficiência

Mesmo a função atual de gerar aleatoriedade é um triunfo para a computação quântica. A aleatoriedade quântica certificada pode se tornar um recurso importante para a computação, uma vez que o randômico é um componente fundamental da Ciência da Computação e aleatoriedade quântica é o ápice atual. O Google já está realizando testes em seu algoritmo e nos próximos meses deverá implementar um protótipo que fornecerá números randômicos certificados.

Segundo o anúncio oficial, essa tecnologia não ficará restrita aos laboratórios do Google. Seus processadores estarão disponíveis no futuro para colaboradores e pesquisadores acadêmicos, assim como empresas interessadas em desenvolver algoritmos e aplicações do mundo real. Conforme Martinis e Boixo escreveram, “pesquisadores criativos são o mais importante recurso para a inovação – agora que temos um novo recurso computacional, esperamos que mais pesquisadores entrem em campo motivados, tentando inventar algo útil”.

Sundar Pichai conclui com uma visão:

Ainda estamos a alguns anos de expandir e construir computadores quânticos que funcionarão bem o suficiente. Outra aplicação em potencial pode incluir projetar baterias melhores. Enfim, você está lidando com química.

(…) A cafeína tem 243 estados ou algo assim [na verdade, 1048]. Sabemos hoje que nem conseguimos entender a estrutura básica das moléculas com a computação clássica. Então, quando olho para as mudanças climáticas, quando olho para os medicamentos, é por isso que estou confiante que um dia a computação quântica conduzirá o progresso lá.