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O dia em que o Serviço Secreto dos EUA perseguiu hackers de RPG

Trinta anos atrás, em primeiro de março de 1990, o Serviço Secreto do governo dos Estados Unidos cometeu uma gafe histórica que se tornaria uma mancha em sua eficiência e uma lenda nos círculos de RPG de mesa. Em busca de hackers de verdade, os agentes invadiram e fizeram uma busca em uma editora que lidava com hackers de fantasia. As fronteiras entre o real e a paranoia foram rompidas naquela tarde e o erro serviu para impulsionar as vendas do jogo.

O incidente foi um reflexo de uma década de transição, um ponto de virada entre uma década de 80 tomada por visões de um futuro que parecia distante e uma década de 90 que se iniciava trazendo o que viria a ser uma revolução tecnológica. Nessa fina linha estava uma agência de governo que não sabia lidar com os avanços, temia a inovação e perseguia fantasmas a partir de uma denúncia vazia de uma empresa de telefonia que tampouco tinha noção da dimensão do que estava na mesa.

Felizmente, o incidente teve um saldo positivo cujos reflexos podem ser sentidos até hoje, três décadas depois, e sempre é um bom momento para ter a consciência de que o futuro cyberpunk lá detrás é nossa época de agora.

Cowboys do ciberespaço

Para começar a entender o equívoco, é necessário voltar um pouco no tempo e capturar novamente o espírito da época. Embora hoje seja fácil perceber o quanto a computação e a internet se integraram em nossas vidas cotidianas, a ponto de se tornarem algo trivial e praticamente invisível, nos anos 80 tudo isso ainda era uma novidade para grande parte da população. E aquilo que é novo não é compreendido e o que não é compreendido é envolto em fantasias e medos.

A world wide web sequer existia na década de 80, e a internet era somente um conjunto de diferentes redes de comunicação, restritas ao ambiente universitário ou corporativo, muitas vezes ecossistemas fechados e desconhecidos. Receber um email ou frequentar um grupo de notícias era para poucos iniciados. Para muitos, era um campo pertencente à ficção-científica.

Essa década viu nascer visões impressionantes do futuro, como o clássico Neuromancer, escrito por William Gibson ainda em 1984. Nascia ali o termo ciberespaço, por exemplo. O gênero cyberpunk foi fundado na literatura e os conceitos do que seria esse futuro distópico dominado por uma grande rede, em que hackers seriam os novos cowboys, apenas começavam a preencher o imaginário.

Nesse período, o mito do hacker era cercado de concepções equivocadas, muitas vezes incensado pela mídia como uma ameaça oculta que poderia colocar abaixo os pilares da sociedade, outras vezes focado pelas forças policiais como um perigo real e em algumas vezes transformado pela própria comunidade em um rebelde virtuoso. Esse caldeirão de opiniões pré-concebidas entraria em choque no início da década seguinte.

The Mentor

Nesse cenário, Loyd Blankenship era uma espécie de lenda viva. Durante os anos 80, ele tinha pertencido ao coletivo hacker conhecido como Legion of Doom, com o pseudônimo de The Mentor. Sob essa alcunha, ele escreveu um artigo intitulado “A Consciência de um Hacker“, que mais tarde seria conhecido como o “Manifesto Hacker” dentro da comunidade.

O manifesto que pregava que seu “único crime tinha sido a curiosidade”, era uma mistura de desabafo e desafio ao sistema, após Blakenship ter sido preso por hacking. Ali, ele bradava que “vocês podem ter detido esse indivíduo, mas não conseguirão parar todos nós”.

Ainda assim, depois de sua experiência com o braço longo da lei, The Mentor se aposentou da cena e conseguiu um emprego de engenheiro de software em uma empresa gráfica em Austin, no Texas. Seus dias de hackear haviam terminado, mas não seus contatos com os antigos parceiros. Blakenship ainda era um ávido consumidor de literatura cyberpunk, jogos eletrônicos e frequentador de grupos de notícias.

Entretanto, o engenheiro acabaria perdendo seu emprego em 1989. Em busca de novos horizontes, ele bateu na porta da editora Steve Jackson Games, responsável pelo sistema de RPG GURPS. Com sede na mesma cidade de Austin, era uma escolha bastante prática para uma nova carreira.

“Eu escrevi uma proposta bacana para Steve sobre que grande oportunidade eu seria para ele e para a empresa”, recorda o ex-hacker. Quatro semanas depois, Blakenship tinha sido contratado como Editor de Gerenciamento e estava encarregado de produzir um suplemento para GURPS que explorasse o vibrante e novo conceito de cyberpunk.

Por seu conhecimento em informática, ele também acumulou a função de ser o administrador do Illuminati, a jocosamente nomeada BBS da editora, que funcionava em uma linha discada na sede da Steve Jackson Games. Em paralelo, Blakenship ainda administrava outro boletim de notícias, o Phoenix Project, em parceria com Chris Goggans, mais um veterano da Legion of Doom. Na prática, os dois fóruns funcionavam como um ponto de encontro para entusiastas de tecnologia, RPG e ficção-científica. Entretanto, essas ligações atrairiam a atenção do Serviço Secreto de uma forma que ninguém lá dentro estava esperando.

Corra, Que a Polícia Vem Aí

A confusão começou quase dois anos antes e bem longe de Blankenship ou da Steve Jackson Games. Ela começou quando um hacker chamado de Prophet invadiu o mainframe da companhia telefônica BellSouth, em setembro de 1988, e copiou um documento que ele encontrou.

Era apenas um arquivo de texto, mas acreditou-se na época que ele continha informações de alta periculosidade sobre o funcionamento do sistema de comunicação de emergência 911 da empresa. Supostamente, explicava como era possível para o sistema identificar e priorizar chamadas realizadas através do número 911, o telefone de contato da polícia norte-americana, o equivalente a nosso 190. A BellSouth avaliou o documento em cerca de 80 mil dólares e alertou as autoridades de que ele conteria informações que poderiam ser utilizadas para quebrar o sistema 911 a nível nacional. Era o início de uma caçada real por um crime virtual.

Anos mais tarde, descobriu-se que a avaliação era equivocada em todos os sentidos. O cálculo do valor do documento incluía os salários de todos os funcionários envolvidos em redigir, editar e armazenar o arquivo, assim como o custo do hardware em que ele estava guardado (o que, por si só, já somava quase metade dos 80 mil dólares alardeados, incluindo até mesmo a impressora e o monitor da unidade!). Além disso, a BellSouth também tinha inserido na fatura o valor do software utilizado para produzir o documento.

O documento em questão acabaria sendo publicado gratuitamente em um boletim da Phrack, a mesma revista hacker em que The Mentor havia publicado seu manifesto, e que continua arquivada online até hoje. O Serviço Secreto seguiu o rastro do documento e indiciou integrantes da Legion of Doom e reiterava que o documento “poderia ser utilizado para ganhar acesso não-autorizado aos sistemas de computador de emergência 911 nos Estados Unidos e consequentemente perturbar ou cessar o serviço 911 em partes dos Estados Unidos”.

Em primeiro de março de 1990, Loyd Blankenship e sua esposa foram acordados por seis agentes do Serviço Secreto de arma na mão, que invadiram sua residência com um mandado de busca e apreensão. Eles levaram um computador, uma impressora e até mesmo um telefone. Eles estavam atrás de uma suposta cópia do documento da BellSouth que poderia estar em posse do editor. Dali, os agentes seguiram com Blankenship para a sede da Steve Jackson Games com o mesmo objetivo.

Segundo o editor, os agentes estavam prontos para derrubar a porta da empresa, que ainda não tinha começado o expediente. Como Blankenship tinha as chaves, ele permitiu o acesso mais fácil aos escritórios. Uma vez lá dentro, os oficiais do Serviço Secreto confiscaram computadores que estavam sendo utilizados para rodar o BBS Illuminatti, assim como todas as máquinas que continham arquivos relacionados ao ainda não publicado GURPS Cyberpunk, que Blankenship estava produzindo.

O mandado expedido para o Serviço Secreto especificava que Blankenship e Goggans estariam de posse de “um arquivo de texto roubado ou obtido de forma fraudulenta por computador no valor de US$79.000”. Era o documento da BellSouth, que ironicamente não foi encontrado em nenhum dos computadores apreendidos.

O Serviço Secreto estava atrás do arquivo, entretanto o livro de RPG foi classificado posteriormente como potencialmente perigoso. Quando Steve Jackson finalmente foi contatado sobre o incidente e foi questionar o confisco, o informaram categoricamente que sua empresa estaria prestes a publicar um “manual para crime de computador”. Jackson tentou argumentar, explicar que tudo aquilo era ficção-científica, que o livro também falava sobre transplante de consciência eletrônica, implantes cibernéticos, rolamento de dados. Em vão. De acordo com seu testemunho, os agentes insistiam que “isso é real”.

A descrição detalhada do “funcionamento” de uma rede em GURPS Cybperpunk.

O engano custaria caro para a Steve Jackson Games. Endividada, a editora precisava de um fluxo constante de novas publicações para manter o caixa. O confisco do rascunho quase terminado de GURPS Cyberpunk iria adiar o lançamento em meses. Sem outra escolha, Steve Jackson demitiu oito funcionários, metade de sua força de trabalho, uma semana depois da chegada do Serviço Secreto. Uma vez que o material apreendido não foi devolvido durante os meses seguintes, a equipe restante da editora teve que refazer o livro praticamente do zero, a partir de anotações guardadas, e enviar para a gráfica.

Uma nova fronteira

A edição que chegaria nas livrarias de GURPS Cyberpunk podia não ser a mesma que havia sido apreendida, mas continha uma clara referência ao incidente estampada em sua capa. Ironicamente, a editora agradecia ao Serviço Secreto por “comentários não solicitados” e mencionava a Legion of Doom como consultores hackers. A controvérsia de um livro de RPG tão “realista” que confundiu até o governo americano serviu como um impulso para as vendas.

Entretanto, Jackson enxergava ali um perigoso precedente. Já no editorial do livro, ele encerrava sua visão do caso com palavras amargas: “agora parece que qualquer um com algum conhecimento de computação é um suspeito (…) talvez o futuro cyberpunk esteja mais próximo e seja mais sombrio do que nós imaginamos”.

Steve Jackson não se restringiu a um editorial e foi buscar Justiça. Encontrou ajuda em John Perry Ballow, um veterano da contracultura dos anos 60 que havia descoberto uma nova fronteira na emergente comunidade da computação. Barlow e mais um grupo de especialistas legais com conhecimento de tecnologia assumiram a empreitada de defender a Steve Jackson Games.

Barlow já tinha experiência com os erros do governo, ao ter sido detido e interrogado sobre um suposto vazamento de código fonte da Apple. A confusão o fez compreender que as autoridades não tinham uma percepção muito clara de como funcionava a tecnologia e isso poderia se tornar uma ameaça às liberdades civis em uma cultura online que estava crescendo de forma exponencial. Diante do caso de GURPS Cyberpunk, ele partiu para a ação: com alguns aliados do Vale do Silício, ele fundaria a  entidade Electronic Frontier Foundation em julho de 1990. O próprio Steve Jackson compareceu à cerimônia.

Entre as muitas falhas do Serviço Secreto e de toda a história envolvendo o documento da BellSouth, talvez a mais gritante tenha sido a descoberta de que o documento nunca tinha sido importante para começo de conversa. O próprio The New York Times revelou na época que o mesmo conteúdo do arquivo estava disponível em um manual que a empresa de telefonia vendia publicamente por meros US$13 e continha apenas procedimentos administrativos e burocráticos para o funcionamento do 911 dentro da empresa.

Com a ajuda de Barlow e seu time de entusiastas, Jackson obteve um advogado capaz de obrigar o Serviço Secreto a devolver o equipamento ilegalmente retido. Há relatos de que computadores e monitores teriam sido devolvidos em más condições. Posteriormente, Jackson e três funcionários foram indenizados em 300 mil dólares nos tribunais devido às falhas do Serviço Secreto.

GURPS Cyberpunk foi publicado originalmente no Brasil pela Devir Editora.

A Steve Jackson Games continua na ativa até os dias de hoje, produzindo livros de RPG sobre diferentes cenários, que vão do horror à fantasia, passando por subgêneros da ficção-científica, como space operasteampunk e, claro, cyberpunk. Eles também produzem o card game Munchkin.

A Electronic Frontier Foundation também continua na ativa, funcionando como uma atuante linha de defesa contra abusos de autoridade, advogados do direito de privacidade na internet e guardiões sem fins lucrativos do bom uso da tecnologia.

Loyd Blankenship não atua mais no ramo de RPGs, mas não se afastou da segurança eletrônica. Atualmente, ele trabalha como designer de interface de usuário da McAfee.