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Geração Google e a informação estruturada

O mecanismo de busca Google foi lançado em 1998 e mudou a forma como informação poderia ser localizada no mundo digital. Vinte e quatro anos depois, uma geração inteira de pessoas cresceu em uma realidade em que sempre existiu o Google. Sem concorrentes de peso por quase um quarto de século, seus conceitos alteraram e continuam alterando o ecossistema, em uma soberania que parece ter a resposta para todas as perguntas, em que o próprio mecanismo de busca não parece mais preocupado em direcionar seus usuários, mas saciar sua sede de conhecimento na própria página inicial.

Qual é o impacto dessa mudança de paradigmas? Bastante grande quando nos damos conta de que a vasta maioria dos usuários não possui a mesma origem na área de informática do que nós e, até mesmo no caso dos profissionais de TI, esse abismo conceitual está se expandindo.

Permitam-me ilustrar com um caso aparentemente anedótico e pessoal: minha esposa guarda todos os seus arquivos na Área de Trabalho do Windows. É um buraco negro com literalmente milhares de documentos e pastas. O que prova que, em casa de ferreiro o espeto, é de pau, porque eu literalmente escrevi contra essa prática anos atrás aqui mesmo no Código Fonte. Porém, esse não é o detalhe importante. O que devemos analisar é como ela localiza o que deseja nesse mar de milhares e milhares de arquivos: utilizando o mecanismo de busca do Windows.

CAOS!
Não. Esse não é o desktop da minha esposa, isso é um Mac. Mas poderia ser.

A Microsoft tem mais ciência das necessidades de seus usuários do que seus detratores imaginam. Não por acaso, a empresa colocou uma forte ênfase em seus motores de busca internos nos últimos sistemas operacionais e tentou transformar Cortana em uma espécie de oráculo para essa nova era de informação dispersa.

Também não pode ser fruto do acaso que a Microsoft tenha “inventado” tantas pastas padrão para os arquivos que seus programas e de terceiros geram: Downloads, Vídeos, Documentos, Imagens, Músicas e até Objetos 3D. É uma tentativa de conter a pulverização extrema de documentos, de forçar que o usuário adote o mínimo de organização possível.

Em contraste, alguns arquivos muito importantes de minha esposa, como comprovantes e documentos físicos escaneados, também estão armazenados na minha máquina. Quando ela precisa, ela sabe que é mais rápido me pedir para achar do que ela mesma confiar na busca do Windows. Em questão de segundos, eu recupero seus arquivos. Por quê? Porque eles estão guardados em pastas coerentes dentro de pastas coerentes dentro de uma estrutura de diretórios que obedece padrões lógicos.

Poderíamos dizer que se trata tão somente da velha diferença entre pessoas organizadas e pessoas desorganizadas, uma modesta historinha doméstica inofensiva se ela não fizesse parte de um fenômeno global cada vez maior.

Perdidos sem direção

Segundo relato publicado no The Verge, a professora de astrofísica Catherine Garland, percebeu o mesmo sintoma em seus alunos de engenharia, em 2017. É importante frisar que estamos falando de pessoas que supostamente teriam o pensamento mais técnico. Esses alunos deveriam utilizar um programa de simulação para modelagem de turbinas em uma atividade, mas não estavam conseguindo localizar os arquivos no diretório onde eles estavam. O ponto nevrálgico descoberto por Garland não era que os alunos não estavam encontrando os arquivos, mas que eles sequer entendiam o conceito de onde os arquivos deveriam estar.

Lincoln Colling, professor de psicologia da Universidade de Sussex, no Reino Unido, passou pelo mesmo espanto. Ele solicitou que os estudantes de uma classe de pesquisadores abrissem um arquivo de um determinado diretório na rede do campus. O professor foi recebido com olhares vazios, como se tivesse se expressado em outra língua. Nicolás Guarín-Zapata, professor de Física da Universidad EAFIT, na Colômbia, também percebeu que seus estudantes estavam tendo dificuldades com a compreensão do que seria um arquivo em um diretório.

Estrutura de pastas

Peter Plavchan, professor associado de física e astronomia da Universidade George Mason, descreve seus alunos, mas poderia estar falando da minha esposa ou de alguém que está do seu lado agora: “os alunos tiveram esses computadores em meu laboratório; eles tinham mil arquivos em sua área de trabalho completamente desorganizados. Eu sou meio que um organizador obsessivo… mas eles não têm nenhum problema em ter 1.000 arquivos no mesmo diretório. E acho que isso se deve fundamentalmente a uma mudança na forma como acessamos os arquivos”.

Não se tratam de fatos isolados, incidentes domésticos ou algo contido em uma região cultural do planeta.

O próprio professor Nicolás Guarín-Zapata explica a metáfora que eu acredito que todos nós conhecemos: “Eu abro uma gaveta, e dentro dessa gaveta tenho outro armário com mais gavetas. Como uma estrutura aninhada. No final, tenho uma pasta ou um pedaço de papel que posso acessar”. Essa é a metáfora da organização dos documentos em um sistema operacional. É por isso que “pastas” são chamadas de “pastas”, “arquivos” são chamados de “arquivos” e “desktop” (“topo da mesa”, em uma tradução mais direta que Área de Trabalho) tem esse nome. Porém, essa metáfora gradativamente se torna tão anacrônica quanto o símbolo do disquete como símbolo de “salvar”. Quantos usuários dos dias de hoje viram um disquete em funcionamento?

Essa representação física do mundo digital parece estar caminhando para o esquecimento. Nas palavras de Guarín-Zapata, a comparação mudou: “eu tendo a pensar que um item vive em uma pasta específica. Ele mora em um lugar e eu tenho que ir até essa pasta para encontrá-lo. Eles (a nova geração) veem isso como um balde, e tudo está no balde”.

O Google tem todas as respostas?

A partir do Google, se configura a tão ansiada era dos “agentes inteligentes”. Uma inteligência externa extrai o que precisa ser extraído de um fluxo aparentemente caótico e infinito de informação. Trocamos o ordenamento pela suposta comodidade.

Google

Entretanto, será que o Google deve carregar em seus ombros todo o fardo dessa mudança de modelos mentais? Não apenas o disquete se tornou uma peça de museu, como também armários, arquivos e, em muitos cenários, a existência de documentos de papel. Não é de se espantar que a metáfora perca seu sentido quando mais e mais estudantes estão chegando nas faculdades, após um longo período de uso de OneDrive, Dropbox, Google Photos e outros sistemas em que você simplesmente larga seu arquivo ou foto por lá, sem muitas preocupações, e o próprio serviço organiza de forma alfabética, cronológica ou até mesmo por temas. E, se tudo mais falhar, a caixa de busca é sua amiga e ela nem precisa trazer a tecnologia do Google.

Além disso, aplicativos dominantes como Facebook, Tik Tok, YouTube, Instagram e outros também produziram uma geração de consumidores, de usuários que não salvam ou criam arquivos, mas consomem uma torrente infinita de informações. Na maioria dos casos, uma foto tirada vai direto para as redes sociais ou para a lixeira, sem passar por uma pasta de salvamento. Documentos gerados no Office 365 ou no Google Docs ou criados no WordPress residem na nuvem. Hierarquias aninhadas parecem um resquício do século passado para jovens e não tão jovens que surgiram em uma nova realidade.

Infelizmente, esse choque geracional pode impactar determinadas áreas do conhecimento que ainda são obscuras demais para se obter bons resultados com mecanismos de busca. Voltando ao caso da professora de astrofísica, o campo gera uma quantidade absurda de arquivos de imagens, nem todas elas com o devido metadado associado. Com programas desenvolvidos para arquivar e organizar essas imagens, o futuro astrofísico precisa saber como localizá-las adequadamente e navegar pelos diretórios, como um estudioso medieval buscando o manuscrito correto em prateleiras iluminadas por velas no mosteiro.

Para esses cenários, existem três soluções cabíveis: educar uma nova geração sobre o funcionamento de hierarquias e o valor da organização; aguardar que os algoritmos de Inteligência Artificial resolvam esse dilema com buscas ainda mais precisas e específicas; ou, como a evolução tecnológica acabará fazendo acontecer, criar novos sistemas de armazenamento e programas que interajam com os arquivos de uma forma menos organizada, sem que o usuário precise entrar com o caminho exato em uma tela de terminal.

Como Plavchan, um dos professores entrevistados pelo The Verge admite: “imagino que o que vai acontecer é a nossa geração de alunos… eles vão crescer e se tornar professores, vão escrever suas próprias ferramentas e vão se basear em uma abordagem completamente diferente daquela que usamos hoje”.