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Microsoft vence leilão do Departamento de Defesa dos EUA: critérios técnicos ou políticos?

A Microsoft venceu a licitação do Departamento de Defesa dos Estados Unidos na sexta-feira passada (25) para o contrato do Joint Enterprise Defense Infrastructure (JEDI). Foi o estopim para uma guerra de acusações nos bastidores que questionam a validade da escolha e a transparência do processo.

Essa guerra não foi deflagrada agora: ela é o ápice de um conflito bilionário de interesses que vem se arrastando por dois anos e envolve nomes como Google, Microsoft, IBM, Oracle, Amazon e Donald Trump. Nesse momento, pouco se fala dos aspectos técnicos envolvidos nas soluções de nuvem desses fornecedores ou mesmo sobre o impacto dessas tecnologias no verdadeiro campo de batalha. A grande questão é: por quê Microsoft?

É importante entender que JEDI tem um valor potencial de 10 bilhões de dólares (mais de 4o bilhões de reais no câmbio atual), a serem distribuídos ao longo de 10 anos. É uma injeção financeira a longo prazo de um cliente estável e que ainda pode abrir portas para outros contratos. Em suma, é o tipo de vitória comemorada entre acionistas e executivos, mais até do que entre engenheiros e desenvolvedores.

Para o Pentagono, JEDI é essencial para modernizar sua tecnologia e garantir a hegemonia da máquina bélica norte-americana. Para a Microsoft, JEDI não apenas significa uma garantia de dez anos como também representou um ganho imediato na Bolsa de Valores: seus papeis valorizaram cerca de 2.5% horas depois do anúncio oficial do Departamento de Defesa Em contrapartida, as ações da Amazon, favorita na opinião dos analistas mas derrotada na licitação, sofreram uma queda de 0.98% no mesmo período.

Faça tecnologia, não faça guerra

De todos os participantes da licitação de JEDI, o único que desistiu no meio do caminho e escapou das escaramuças que se seguiram foi o Google, curiosamente movido por razões de caráter ético. A desistência do Google aconteceu em outubro de 2018 e foi supostamente motivada por princípios estabelecidos anteriormente, que impediriam a empresa de participar de contratos militares.

Não que o quadro diretor do Google não tenha interesse ou ligações com setores militares, mas a empresa se viu envolvida em uma polêmica no passado. Quando um contrato com o Pentágono conhecido como Maven passou a implementar tecnologia de aprendizado de máquina do Google para reconhecimento de imagens de drones, funcionários protestaram e forçaram o recuo no contrato. Então, até que o Google mude sua visão de negócios, a empresa está temporariamente fora do páreo desse tipo de licitação.

A própria Microsoft tampouco escapou da saia justa: no início do ano, enquanto o processo de licitação do JEDI se arrastava, Satya Nadella, CEO da empresa precisou encarar um protesto semelhante entre seus funcionários. Na opinião de parte dos desenvolvedores da Microsoft, a tecnologia de Realidade Ampliada do HoloLens não deveria ser utilizada para fins militares e eles questionaram o contrato com o Exército para seu uso.

Disputa acirrada

De acordo com o anúncio oficial, o contrato com a Microsoft “continua nossa estratégia de um ambiente de vários fornecedores e várias nuvens, pois as necessidades do departamento são diversas e não podem ser atendidas por nenhum fornecedor. Este contrato abordará os requisitos críticos e urgentes de combatentes não atendidos por uma infraestrutura de nuvem moderna em todos os três níveis de classificação entregues à vantagem tática.”

Nas entrelinhas, entende-se que o governo dos Estados Unidos não quer estar atado às soluções de nuvem de uma única empresa e isso faz sentido. Entretanto, essa abordagem não impediu que disputa fosse selvagem mesmo assim e que, no frigir dos ovos, uma única empresa acabasse abocanhando a fatia da vez.

Mesmo a Microsoft, antes da vitória, tinha ressalvas sobre a possibilidade de um contrato desse porte terminar nas mãos de uma empresa isolada. No ano passado, em um comunicado, a Microsoft avisou: “nós acreditamos que a melhor abordagem é aquela que alavanca a inovação de múltiplos fornecedores de serviços de nuvem”.

Enquanto isso, o Google, fora do processo, não impediu que um representante da empresa emitisse opinião similar sobre a licitação de JEDI: “o Google Cloud acredita que uma abordagem com várias nuvens é do melhor interesse das agências governamentais, porque permite que elas escolham a nuvem certa para a carga de trabalho correta”.

O cenário que existia até a vitória da Microsoft era um cenário que previa a vitória do Amazon Web Services. Na visão de analistas de mercado, essa vitória quase certa da Amazon foi o motor que levou as demais participantes a insistirem na mesma tecla de uma abordagem múltipla. A Amazon não era vista como a favorita apenas por já dominar o mercado de computação na nuvem, mas também por já possuir vários e poderosos contratos com o governo.

Enquanto Google e Microsoft sutilmente sugeriam dividir o bolo que estava praticamente nas mãos da Amazon, IBM e Oracle entraram com protestos formais contra todo o processo de licitação. As duas empresas alegavam que a proposta criada pelo Departamento de Defesa havia sido projetada para favorecer a rival, que seria um jogo de cartas marcadas.

Por conta dos protestos de IBM e Oracle, o governo norte-americano tomou precauções em dobro em relação ao processo de licitação de JEDI. O contrato passou por análise tanto do Escritório de Responsabilidade do Governo quanto pela Tribunal de Reivindicações Federais, que avaliam denúncias contra a administração pública.

Na semana anterior ao anúncio do resultado, o secretário de defesa dos Estados Unidos, Mark Esper, se absteve da responsabilidade de avaliar o acordo por conta do vínculo empregatício que seu filho possuía com um dos licitantes, a IBM. Isso mesmo após a eliminação da IBM na concorrência em uma etapa anterior da competição.

O próprio Departamento de Defesa reforçou seu compromisso com a isenção e com a transparência do processo em seu anúncio oficial, onde afirma que “o processo de aquisição foi conduzido de acordo com as leis e regulamentos aplicáveis. (…) No início, a competição incluiu quatro diferentes fornecedores. Todos os ofertantes foram tratados de maneira justa e avaliados de forma consistente com os critérios de avaliação declarados da solicitação”.

“Nós estamos surpresos”

A vitória da Microsoft na licitação não acalmou os ânimos. Pelo contrário. Desta vez, foi a Amazon que se manifestou negativamente contra o processo: “nós estamos surpresos com essa conclusão”, revelou um porta-voz em um comunicado oficial. Ainda de acordo com a empresa, o Amazon Web Services é considerado “o líder claro em computação em nuvem”. Mais do que isso, “uma avaliação detalhada puramente das ofertas comparativas levaram claramente a uma conclusão diferente”. Ao final, o representante sinaliza que a empresa continua aberta e sutilmente segue insinuando que uma escolha equivocada pode ter resultados ruins na linha de frente: “continuamos profundamente comprometidos em continuar inovando no novo campo de batalha digital, onde segurança, eficiência, resiliência e escalabilidade de recursos podem ser a diferença entre sucesso e fracasso”.

A reclamação do derrotado virou uma denúncia séria nas páginas do jornal The Washington Post, não por acaso propriedade do mesmo Jeff Bezos que comanda a Amazon. O jornal deu destaque para um novo livro escrito por um ex-funcionário do Pentágono que afirma que o presidente Donald Trump tinha um interesse pessoal em “ferrar” a Amazon, deixando a empresa de fora de JEDI.

Bezos e Trump tem um feudo que antecedia a eleição desse último e continuou nos anos seguintes. A insinuação de que o presidente dos Estados Unidos possa ter utilizado seu poder e influência para interferir em um processo licitatório é extremamente significativa, se comprovada.

Franklin Turner, advogado da firma McCarter & English, consultado pelo The Washington Post, endossa a teoria: “é claro como água aqui que o Presidente dos Estados não queria que esse contrato fosse concedido para um dos competidores. Como resultado, é bastante provável que vejamos uma série de desafios de que a aquisição não foi realizada em condições equitativas”.

Esse assunto ainda deve render nos próximos meses. É cedo para a Microsoft comemorar a vitória. Ainda de acordo com Turner, “a Microsoft deveria esperar uma guerra de curto prazo aqui. É virtualmente garantido que a Amazon fará todos os esforços para verificar a matemática do governo nesta questão”.

Essa guerra está apenas começando e, lamentavelmente, não será resolvida do ponto de vista técnico.