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O fantasma da obsolescência

Nosso entendimento futuro sobre a própria natureza do universo e seus componentes mais primordiais repousa hoje em um pedaço de software com mais de trinta anos de história. Se nada for feito pela sua manutenção, todo um campo de conhecimento poderá reduzir seu ritmo significativamente, atrasando descobertas colossais que podem estar logo ali na esquina. Esse trabalho nos bastidores não tem o devido reconhecimento dos meios acadêmicos, ainda que seja uma peça fundamental de pesquisas realizadas no mundo inteiro.

A Física das Partículas é um daqueles ramos da Ciência que poucos dominam e ainda menos pessoas são capazes de explicá-lo de uma forma fácil para os leigos. Você, assim como eu, provavelmente aprendeu na escola que o átomo é a unidade fundamental da matéria. a menor partícula de um elemento químico e praticamente indivisível. Entretanto, pouca coisa dessa definição resiste a um conhecimento mais ligeiramente mais profundo: o próprio átomo é formado por componentes ainda menores (prótons, elétrons e nêutrons), assim como pode ser dividido pelo processo conhecido como fissão nuclear.

Só que parece não haver limites para o conhecimento. Mesmo prótons, elétrons e nêutrons são compostos por partículas menores. Mesmo essas partículas menores são compostas por partículas ainda menores. A Física das Partículas, a grosso modo, quer descobrir até onde vai essa toca de coelho. Ironicamente, para estudar objetos tão infinitamente minúsculos, são necessárias estruturas colossais (como o quilométrico acelerador de partículas LHC) e equações igualmente gigantescas.

Algumas dessas fórmulas matemáticas podem apresentar milhões de termos. São cálculos que seriam impossíveis de serem realizados um século atrás, usando apenas papel e caneta ou giz e quadro negro. Um Físico de Partículas, em sua busca por partículas elementais ainda mais teóricas ou obscuras, necessita desenhar milhares de imagens conhecidas como Diagramas de Feynman, para calcular possíveis resultados da colisão de outras partículas no acelerador. Se nosso entendimento desse microcosmos chegou aonde chegou foi devido, em larga escala, ao uso de computadores. Porém, assim como as partículas que são objetos desse estudo, os computadores estão na camada mais superficial. Sem o software adequado, nada seria possível. Sem Jos Vermaseren, não existiria o software adequado.

Três décadas por trás de tudo

 Jos Vermaseren
Jos Vermaseren

O holandês Jos Vermaseren é um Físico de Partículas nada conhecido fora de seu meio. Sua produção acadêmica muito provavelmente também é pouco conhecida dentro do meio. Ainda assim, sua contribuição para a evolução da Física de Partículas é inestimável: ele é o criador de FORM, um programa desenvolvido especificamente para lidar com as expressões matemáticas imensas exigidas por esse ramo da Ciência. Desde os anos 2000, não se passa uma semana sem que um novo artigo científico não seja publicado baseado em cálculos que foram realizados com o uso do FORM.

O antecessor do FORM no ecossistema era o Schoonschip, criado pelo também holandês Martinus Veltman. O Schoonschip era um chip customizado que era encaixado em um computador Atari (não confundir com os consoles de videogame), exclusivamente para processamento de equações de física de partícula. Vermaseren desejava uma solução mais eficiente e prática: um programa de computador que pudesse ser baixado e distribuído em qualquer lugar do mundo, no lugar de uma peça de hardware que precisava de fabricação e era limitada uma configuração específica.

Com base nessa ideia, Vermaseren começou a trabalhar em um software escrito em FORTRAN. Uma vez que FORTRAN significa Formula Translation (“Tradução de Fórmula”, em Português), o desenvolvedor batizou sua solução de FORM. A versão mais recente do programa atualmente é escrita em C, mas o nome ficou. Em 1989, o FORM era apresentado para a comunidade científica, substituindo o Schoonschip rapidamente. Já no final dos anos 90, mais de 200 instituições de pesquisa já tinham baixado o programa e adotado em suas pesquisas.

Uma das grandes sacadas de Vermaseren no desenvolvimento do FORM estava no modelo de gerenciamento de memória. É de se imaginar que equações matemáticas com milhões de elementos exijam quantidades astronômicas de memória. Como o holandês resolveu isso em 1989? Era impossível lidar com as limitações de RAM de sua época e era certo que os dados precisariam ser armazenados no próprio disco rígido, como memória virtual, fazendo o processo de swapping, carregando e descarregando continuamente. O que o FORM faz é assumir o controle da operação, passando por cima do sistema operacional, gerenciando diretamente a forma como o disco rígido é acessado. O programa de Vermaseren então atribui a cada parte da equação uma quantidade fixa de espaço no disco rígido e cria um índice independente. Assim, o FORM consegue identificar mais facilmente onde estão as partes de uma equação. Esse conhecimento agiliza na hora de recuperar essas informações de volta para a RAM, sem precisar acessar o todo.

Felizmente, Vermaseren produziu um programa que era facilmente escalável. Na medida em que as configurações de computador disponíveis iam conquistando mais memória e mais espaço de armazenamento, o FORM ia se tornando exponencialmente mais capacitado. Se o programa já era capaz de cumprir sua função usando um 128 kilobytes de RAM no Atari 130XE, ele hoje opera milagres em PCs poderosos com 128 gigabytes de RAM.

A eficiência do FORM o colocou na posição singular de ser capaz de lidar com petabytes de dados gerados pelo LHC e impulsionar a descoberta de novas partículas por três décadas seguidas.

O começo do fim?

Jos Vermaseren completou 73 anos em 2022 e está disposto a se aposentar. Ele está se retirando da manutenção do FORM e isso significa que o programa caminha agora para sua obsolescência. Ainda que ele tenha conseguido a ajuda de alunos e ajudantes durante todo esse tempo, o físico desenvolvedor foi o principal responsável por manter o programa atualizado e compatível com gerações de sistemas operacionais e hardwares.

Vermaseren nunca recebeu um centavo direto pelo FORM. Como membro do Instituto Nacional de Física Subatômica da Holanda, ele tem uma bolsa permanente para fazer pesquisas e trabalhar em seus projetos. Lamentavelmente, ele é uma exceção. Stefano Laporta, um pesquisador que desenvolveu um algoritmo de simplificação crucial no campo da Física, passou a maior parte de sua carreira sem financiamento para ajudantes ou equipamento.

Tenho visto ao longo dos anos, consistentemente, que as pessoas que passam muito tempo em computadores não conseguem um emprego estável em Física.

Jos Vermaseren

Tecnicamente, já existe um sucessor do FORM. Ele se chama Mathematica, um programa mais moderno, com interface amigável e amplo suporte. Porém, Mathematica está várias ordens de grandeza atrás do FORM em termos de performance. Veteranos da Física de Partículas preferem utilizar hardware antigo e enveredar pelos meandros do FORM do que andar para trás e usar o Mathematica, enquanto novos estudantes saídos agora das faculdades se sentem mais confortáveis com o software moderno, abrindo um abismo de resultados na academia. Equações que o FORM torna possíveis de serem solucionadas são incompatíveis com o Mathematica e o fim do software ancestral pode significar um atraso de dez anos nas pesquisas.

Em abril desse ano, Jos Vermaseren irá reunir uma cúpula de usuários do FORM para discutir o futuro do programa e como escapar do fantasma da obsolescência. Esse caso é a ponta visível de um iceberg de criadores que não tem o seu trabalho reconhecido. Diversos setores da indústria e da Ciência são dependentes de soluções de código aberto, desenvolvido por voluntários. Como peças de dominó, a ausência de uma ferramenta pode provocar efeitos ainda inimagináveis na evolução do conhecimento.