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O que aconteceu com o Flash?

Na virada do milênio, a internet estava passando por uma revolução. Impulsionados por um afluxo de capital que parecia não ter fim e uma tecnologia que escapava das limitações do HTML 4, novos e exóticos sites surgiam. Na Era de Ouro do então chamado Macromedia Flash, havia movimento, música, sons, interatividade de formas nunca antes imaginadas e a criatividade de seus produtores competia com a capacidade do público de entender o que estava acontecendo.

Foi um breve surto que acometeu a todos, apaziguado tanto pelo infame “estouro da bolha” quanto pela percepção de que usabilidade deveria ser um elemento fundamental para o sucesso de empreendimentos.

Entretanto, o Flash sobreviveria aos trancos e barrancos por mais duas décadas, encerrando de vez sua presença na web agora. É uma despedida anunciada desde 2017, que finalmente chegou: a partir de 31 de dezembro, a tecnologia será desligada para sempre. Afinal, o que aconteceu?

Origem

A origem do Flash se confunde com a história de Jonathan Gay e começa ainda nos anos 80. O jovem prodígio ganhou um prêmio na Feira de Ciência de seu colégio, programando em um computador Apple II. A façanha chamou a atenção do empreendedor Charlie Jackson, que convidou o rapaz para estagiar em sua empresa, a  Silicon Beach Software, depois das aulas.

Ali, Gay iniciaria sua carreira no desenvolvimento de jogos e programas, permanecendo lado a lado com Jackson até a empresa ser vendida para a Aldus Corporation. Nessa primeira década, o programador aprendeu a trabalhar com produção de vetores e curvas, incorporando funcionalidades ao SuperPaint 2 e criando do zero o IntelliDraw, que seria lançado como um produto da Aldus.

Em 1993, Gay e Jackson juntariam forças novamente, fora da Aldus, fundando uma nova companhia: a FutureWave Software. Entretanto, a primeira aposta da dupla se mostraria um equívoco. A recém-fundada empresa investiu no desenvolvimento de programas para o sistema operacional PenPoint OS, projetado para tablets e dispositivos baseados no uso de uma caneta. No ano seguinte, nascia o SmartSketch, uma ferramenta de desenho vetorial que daria início a uma revolução que duraria mais de um quarto de século.

O sistema operacional foi descontinuado, assim como o hardware que o suportava, e o SmartSketch se viu com seu futuro ameaçado. A saída encontrada pela FutureWave foi portar o programa para o Windows e o Mac e encarar uma concorrência acirrada de gigantes já estabelecidos, como Corel, Adobe e Autodesk.

Novamente, o SmartSketch falhou em encontrar uma audiência. Durante a SIGGRAPH 95, a empresa tinha caixas e mais caixas do produto para vender em seu estande (cedido pela WACOM no último instante), mas não vendeu uma única unidade. Porém, no estande em frente, uma empresa de animação estava com fila na porta para mostrar uma ferramenta para produção de filmes e desenhos. Aquilo acendeu uma lâmpada na mente dos profissionais da FutureWave.

Ao mesmo tempo, a web explodia em popularidade e o processo de raciocínio era simples: criar um produto que permitisse a criação de animações vetoriais para serem exibidas em páginas de internet. Não tinha como dar errado. E, desta vez, a aposta rendeu.

Das cinzas do SmarSketch surgiu o FutureSplash Animator, que já trazia em sua proposta um editor e um player (inicialmente em Java). A primeira tentativa da empresa foi vender a tecnologia para a Adobe, porém, ironicamente, a oferta foi rejeitada. Sem fundos ou expectativa, o novo programa foi lançado comercialmente no mercado pela própria FutureWave.

O plugin em Java funcionava mal no Netscape Navigator, mas rodava de forma satisfatória no Internet Explorer. A novidade chamou a atenção da própria Microsoft, que buscava uma abordagem diferente para seu portal MSN para se destacar da concorrência, e da Disney, que também tinha interesse em alavancar conteúdo online. Era o produto certo na hora certa.

Ascensão

O interesse da Disney despertou a ira da Macromedia, uma empresa focada na produção de ferramentas interativas multimídia. Naquela época, eles buscavam fechar um contrato com a Disney para licenciar o Macromedia Director e usar o formato Shockwave em seus produtos online. Passadas mais de duas décadas, ainda há quem confunda as duas tecnologias, mas o fato é que os dois produtos, Shockwave e Flash, vieram de caminhos distintos, de empresas que foram rivais por um breve momento.

Vivendo por anos nos limites de suas finanças, Jonathan Gay e Charlie Jackson aceitaram a primeira oferta feita pela Macromedia e venderam a FutureWave em dezembro de 1996. Para marcar a aquisição, o FutureSplash Animator foi renomeado como Macromedia Flash 1.0.

O Flash 2.0 viria menos de seis meses depois, ainda com Gay no comando do desenvolvimento. Apesar de resistências internas dentro da própria Macromedia, que via a nova equipe como uma espécie de rival interna do Director ou um produto redundante, o Flash prosperou a partir da infraestrutura e do marketing da empresa.

Na prática, as duas ferramentas tinham o mesmo propósito: produção de conteúdo multimídia. Porém, o Flash tinha um foco na web e na facilidade de uso, enquanto o Director era um programa mais robusto, focado na criação de conteúdo para CD-ROM e com uma curva de aprendizado mais íngreme. Ainda que o Director não tenha sido extinto, ele foi perdendo relevância dentro da Macromedia, com sua equipe de desenvolvimento sendo reduzida e a do Flash aumentando, enquanto a febre do CD-ROM dava lugar ao irreversível avanço da web.

Gay tinha liberdade para agir e permaneceria como o principal responsável pela evolução da tecnologia até a compra pela Adobe, atingindo o posto de Vice-Presidente de Engenharia da Macromedia, mas muitas vezes programando pessoalmente novos recursos.

Nesse período, a ferramenta recebeu recursos internos de script (o ActionScript), orientação a objetos, transparência alpha, filtros e suporte a vídeo embutido. A cada inovação, sua popularidade crescia e se expandia para territórios inexplorados. Repentinamente, a tecnologia criada inicialmente para produção de animação estava se tornando o catalisador de novos tipos de sites, jogos online e até mesmo a exibição de vídeos na internet, um sonho pretendido pelo RealPlayer, mas nunca concretizado no mesmo patamar que o Flash permitia.

Em 2001, o Flash já contava com uma equipe de desenvolvimento de 50 pessoas, era utilizado como ferramenta de trabalho por meio milhão de profissionais no mundo todo e tinha um volume de 325 milhões de usuários na web.

Ainda assim, o Flash ainda estava longe de sua maior contribuição: o YouTube. “Foi uma espécie de debate dentro da Macromedia se deveríamos adicionar vídeo ao Flash”, lembrou Gay, em entrevista recente. “Tínhamos a preocupação de que, se tivéssemos vídeo, seríamos esmagados pela Microsoft e pela Real Networks.”

Depois da decisão de seguir em frente, Gay liderou uma equipe especial dentro da empresa, o chamado Tin Can Team, para o desenvolvimento de uma solução ponta a ponta para a transmissão de vídeo pela internet, desde o servidor até o cliente. Essa arquitetura seria licenciada por uma startup emergente, um certo YouTube, onde se tornaria a solução padrão até 2015.

Queda

O sucesso do YouTube e a onipresença do Flash como forma de se transmitir vídeo pela internet atraiu a Adobe. A empresa, que teve a chance de comprar a tecnologia lá atrás e recusou, fez uma oferta bilionária pela Macromedia em 2005: 3.6 bilhões de dólares, para ser mais exato. Na opinião de analistas, 3 bilhões eram relativos ao Flash, os seiscentos milhões equivaliam ao restante do catálogo da Macromedia (DreamWeaver, Director, Fireworks etc).

Atribuir o declínio do Flash à compra pela Adobe seria injusto. Ainda assim, após a aquisição, Jonathan Gay se retirou do desenvolvimento para seguir outros projetos na área de tecnologia. Além disso, a Adobe, de fato, tomaria decisões administrativas que não ajudariam a evitar a morte quase inevitável do produto.

Na web, o Flash já vinha perdendo terreno, com a percepção de que usabilidade era um diferencial e com a necessidade de se gerar sites mais leves. Em contrapartida, o próprio HTML estava evoluindo, lado a lado com outros padrões, como CSS, JavaScript e SVG, que ofereciam sites mais dinâmicos, sem perder performance ou compatibilidade. Em outras palavras, o Flash caminhava para a obsolescência em uma fronteira onde antes havia dominado.

Alheia a esse problema ou buscando novos horizontes, a Adobe investiu em recursos 3D e aplicabilidade em múltiplas plataformas, tentando através do Flex e do  Adobe Integrated Runtime (AIR), transformar a tecnologia Flash em algo muito distante de suas origens, apostando pesado em gerar um ambiente de desenvolvimento. O resultado era um plugin complexo, com questões graves de performance e questões ainda mais graves de segurança.

Gay reconhece agora que essa abordagem foi um erro: “sempre fui resistente a essa ideia. Havia muito mais que poderíamos fazer com a mídia e o profissional de criação e outros . Então [o mercado corporativo] foi uma espécie de distração, eu acho, aquele tipo de distração que sobrecarregou o Flash”.

Ainda assim, a Adobe desfrutou de cinco anos de popularidade relativamente viável até 2010, quando colheu o que estava plantando e perdeu de vez o mais significativo mercado da década que emergia: os dispositivos móveis. Através de uma carta aberta histórica, Steve Jobs explicou porque estava banindo o Flash do iPhone, selando uma porta que seria uma sentença de morte para a tecnologia. Ele listava uma fileira de problemas que o teriam motivado a tomar essa decisão: formato proprietário, a existência de padrões para jogos e vídeos fora do Flash, confiabilidade, segurança, performance, vida útil da bateria e falta de suporte para interface de toque.

Entretanto, o próprio Jobs destacava o mais importante dos motivos: “Flash é uma ferramenta de desenvolvimento multiplataforma. Não é objetivo da Adobe ajudar os desenvolvedores a escrever os melhores aplicativos para iPhone, iPod e iPad. É seu objetivo ajudar os desenvolvedores a escrever aplicativos multiplataforma. (…) Nossa motivação é simples – queremos fornecer a plataforma mais avançada e inovadora para nossos desenvolvedores e queremos que eles se posicionem diretamente sobre os ombros dessa plataforma e criem os melhores aplicativos que o mundo já viu”.

A falta de confiança de Jobs era um sentimento generalizado. Em 2012, o plugin também seria removido do ecossistema Android. O executivo da Apple apenas expressou uma impressão que já havia se espalhado: Flash tinha se tornado uma solução pesada, complexa, insegura e controlada com mão de ferro pela Adobe, enquanto havia alternativas melhores surgindo.

A Adobe tentou de todas as formas manter a chama acessa pelos sete anos seguintes. A perda do YouTube em 2015, quando a plataforma abandonou o plugin em definitivo, foi outro golpe duro. Em 2016, seria a vez do Adsense abrir mão dos banners em Flash.

A empresa jogaria então a toalha em 2017, com um comunicado formal: “a Adobe está planejando o fim da vida útil do Flash. Especificamente, pararemos de atualizar e distribuir o Flash Player no final de 2020 e incentivamos os criadores de conteúdo a migrar qualquer conteúdo Flash existente para esses novos formatos abertos.”

A data final está mais próxima do que nunca. É um ponto final para uma jornada que já vinha desacelerado completamente nos últimos três anos. Nesse exato momento, não há um único navegador ativo no mercado que tenha o plugin do Flash ativado por padrão. Jogos e serviços essenciais que dependiam da tecnologia já foram extintos ou adotaram outros formatos.

O nome Flash será permanentemente abandonado de vez em 31 de dezembro, mas suas ideias irão continuar ativas na forma do Adobe Animate e do Adobe AIR, que permanecerão operacionais por mais alguns anos, até por causa de aplicações legadas no mercado corporativo. Para todo o resto, o Flash sumirá, não com um clarão de luz que lhe deu o nome mas com um morno e praticamente esquecido esvanecimento.