Axie Infinity
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Ascenção e queda da startup de “três bilhões de dólares”

Em outubro de 2021, a Sky Mavis atingiu o pico de sua avaliação. A desenvolvedora de jogos sediada no Vietnã obteve uma rodada de investimentos de 152 milhões de dólares, atraindo nomes de peso do capital de risco, como Andreessen Horowitz e Mark Cuban, tendo um único produto em seu acervo: o título Axie Infinity. De acordo com os analistas, a empresa e seu produto teriam um valor de mercado de três bilhões de dólares.

Seis meses depois, a Sky Mavis sofreria um furto eletrônico de 620 milhões de dólares, desviados de seu sistema de criptomoedas por hackers. Ao mesmo tempo, Axie Infinity atravessava uma crise de confiança por parte dos jogadores e sua economia parecia prestes a ruir. O que deu de errado? Será possível que a empresa meteórica consiga se recuperar dessa queda ou a aventura estava fadada a ter esse destino desde o início?

E, afinal, o que é Axie Infinity?

Tudo começou com gatinhos…

As fronteiras entre o dinheiro do mundo real e as economias digitais dentro dos jogos eletrônicos nunca foram exatamentes rígida e as tentativas de cruzar esses limites que vemos hoje são reproduções de práticas que já tem uma certa história. Tanto é assim, que a trajetória da Sky Mavis se inicia em 2017, com um título de gatinhos fofos chamado Cryptokitties.

Antecipando os NFTs, Cryptokitties é um jogo em que os jogadores podem colecionar gatinhos diferenciados que podem se reproduzir entre si e gerar novos gatinhos digitais exclusivos. Essas criaturas virtuais podem ser negociadas e seu valor pode ser maximizado através de especulação. Em apenas seis meses após o seu lançamento, Cryptokitties atingiu o ponto viral e alguns de seus personagens chegaram a ser comercializados por valores na casa de seis dígitos.

Trung Thanh Nguyen foi um dos inúmeros jogadores/investidores atraídos pela sedução do comércio de gatinhos virtuais. Em alguns meses, Trung investiu cerca de 600 dólares na empreitada e chegou a ter 1000 criaturas em seu acervo. A experiência com a economia do jogo acendeu uma luz em seu cérebro: gerar um outro jogo baseado em blockchain, um título que conseguisse combinar os aspectos de propriedade de itens exclusivos, como existia em CryptoKitties, com o sistema de batalhas visto em jogos muito mais populares, como Pokémon ou Neopets.

Trung Thanh Nguyen - CEO
Trung Thanh Nguyen – CEO da Sky Mavis

Nos fóruns de Cryptokitties, Trung encontrou Jeffrey Zirlin e Aleksander Leonard Larsen. O primeiro era um novaiorquino que trabalhava com sistema financeiro que também havia sido fisgado pelo conceito de colecionáveis digitais. O segundo era um norueguês que já havia atuado como gerente de comunidade de um estúdio de jogos. Da amizade, surgiu uma sociedade. Zirlin deixou seu país de origem, sua namorada e seu cachorro e se mudou em 2018 para Ho Chi Minh City, a maior cidade do Vietnã, onde residia Trung. Juntos, os três começaram a trabalhar em um projeto chamado de Axie Infinity e, logo depois, fundariam a Sky Mavis para administrar o negócio.

Jeffrey Zirlin – Líder de crescimento da Sky Mavis

Todos os fundadores tinham um histórico de empreendedorismo. Trung, aos 19 anos, tinha sido o CTO e o co-fundador de uma startup de comércio eletrônico no Vietnã que existe até hoje. Ele também atuou como engenheiro de software na investidora Anduin Transactions. Larsen, por sua vez, chegou a trabalhar para o governo da Noruega, enquanto Zirlin também vinha do mercado de investimentos.

Zirlin descreve o objetivo que os três fãs de Cryptokitties tinha: “CryptoKitties foi apenas uma prova de conceito. Queríamos algo que pudesse ser continuamente construído ao longo do tempo, um jogo real”.

Aleksander Leonard Larsen - COO
Aleksander Leonard Larsen – COO da Sky Mavis

Em um primeiro momento, em março de 2018, Axie Infinity era pouco mais que um esboço. Não havia uma jogabilidade exata e os personagens sequer possuíam uma imagem. Ainda assim, a proposta começou a provocar interesse em uma pequena, mas consistente, comunidade de jogadores. Em outubro de 2018, o primeiro sistema de batalha finalmente foi implementado e o projeto decolou de vez: o faturamento gerado pela pré-venda, antes mesmo do lançamento da versão final, foi alto o suficiente para garantir aos desenvolvedores o capital necessário para um ano de operações. Em março de 2019, um novo sistema de batalha mais sofisticado com cartas de combate em tempo real foi introduzido no jogo e uma versão alpha foi disponibilizada para o público em dezembro de 2019.

Ainda nesse momento, Axie Infinity estava longe do sucesso que iria provocar. O lançamento de uma rede transacional própria, batizada de Ronin, catapultou a adesão dos jogadores e o faturamento da Sky Mavis em fevereiro de 2021. A Ronin permitia agilidade nas transações e a remoção de taxas comuns a outras redes de criptomoedas.

Ronin funcionou como o ponto de virada: naquela fase inicial dos jogos baseados em NFT, a concorrência dependia do blockchain Ethereum para administrar as transações. Entretanto, o volume de operações não dava conta da velocidade exigida por um jogo eletrônico, com gargalos ocasionais de tráfego. Ao mesmo tempo, a Ethereum cobra taxas elevadas de operação. Ronin foi a blockchain proprietária desenvolvida pela Sky Mavis para criar seu próprio quintal murado, com maior agilidade, custos reduzidos e verificação centralizada. Talvez até mais do que o próprio jogo, Ronin se tornou uma das grandes sacadas dos três empreendedores.

Onde monstros trocam sopapos

Se Ronin e o modelo de negócios desenvolvido pela Sky Mavis podem ser considerados seus pontos fortes, Axie Infinity, enquanto jogo eletrônico propriamente dito, talvez possa ser considerado o pilar mais fraco de todo o projeto. Em termos comparativos com outros títulos multiplayer do mercado, sua jogabilidade é extremamente simples e, de acordo com a experiência de diversos jogadores, extremamente repetitiva.

Em Axie Infinity, o jogador controla times de três membros de criaturas digitais que enfrentam outros times. Esse seres, inspirados no exótico axolote, são figuras cartunescas formadas por diferentes partes corporais que podem ser intercambiáveis ou geneticamente selecionadas para gerar novos seres, cada um com sua identidade própria. É um conceito reaproveitado em muitas coleções NFT geradas por algoritmos, sem interferência humana.

Esses Axies vivem em um Terrarium, o ponto principal do gerenciamento do jogador. Ali, o jogador deve alimentar suas criaturas, formar seus times, cuidar de sua higiene e até colocá-los para dormir, em uma versão em larga escala dos Tamagotchi de décadas passadas. Entretanto, os Axies tem duas funções essenciais: reprodução (para gerar criaturas ainda mais fortes) e combate.

No momento do combate, que acontece por turnos, cada criatura aguarda placidamente o momento de realizar seu movimento, lançando ataques e feitiços contra seus oponentes. Se uma criatura morre, esse estado é passageiro: ele se transforma em um fantasma. A derrota só acontece quando o time inteiro é convertido em fantasmas. Todo esse processo pode ser concluído em cinco minutos ou menos.

Desta mecânica de luta, brota a economia do jogo: Axies mais fortes obtém mais vitórias. O objetivo dos jogadores é conquistar os melhores Axies, seja através de acasalamento e sorte, seja negociando no mercado. A propriedade dos Axies é autenticada por blockchain, o que torna cada ser virtual um NFT registrado no sistema.

Cada vitória em combate gera fichas de Smooth Love Potion (SLP), uma moeda criada para o jogo. Em torneios mais significativos, é possível faturar Axie Infinity Shards (AXS), uma criptomoeda que pode ser negociada fora do contexto do jogo.

Considerando-se que cada novo jogador precisa de Axies para começar a jogar, que precisam ser adquiridos com dinheiro do mundo real, há um fluxo constante de capital entrando e sendo convertido em moeda eletrônica pela Sky Mavis.

Jogar para faturar

Axie Infinity está inserido em uma tendência econômica da indústria dos jogos conhecida como “play-to-earn” ou “jogar para ganhar”. Como aparece em seu site oficial: “nós acreditamos em um mundo futuro onde trabalho e jogo se tornam um só”. É uma abordagem que vai na contramão da “gameficação das atividades”, tão em voga quase dez anos atrás. Se antes se buscava atribuir um aspecto lúdico a operações que não tinham ligação com entretenimento, como aprendizado ou trabalho, agora se busca atribuir um valor econômico ao entretenimento.

Segundo a Sky Mavis, trata-se de “empoderar nossos jogadores e oferecer-lhes oportunidades econômicas”. A promessa de se ganhar dinheiro com algo tão divertido quanto jogar atraiu 2 milhões de jogadores diários em outubro passado, a mesma época em que a empresa conquistou mais de 150 milhões de dólares em investimentos externos. A partir do momento em que todas as transações dentro do jogo são taxadas em 4.25% pela Sky Mavis é fácil visualizar que o volume de usuários nessa corrida do ouro digital beneficia em demasia os cofres de seus criadores.

Axie Infinity então se tornou o estudo de caso mais efetivo da chamada web3, pelo menos no que tange o cenário “play-to-earn”. O entusiasmo se espalhou para fora de suas portas e até mesmo para fora da bolha cripto já estabelecida. Alexis Ohanian, um dos fundadores do Reddit, é um investidor da Sky Mavis e ousou prever que o modelo de negócios “play-to-earn” se tornaria o paradigma praticado por 90% da indústria dos jogos eletrônicos nos próximos cinco anos. Dentro do ecossistema cripto, Axie Infinity já foi classificado como uma ferramenta de aprendizado, capaz de transformar cidadãos comuns em investidores em criptomoedas, a partir de seus aspectos lúdicos.

Outras estruturas econômicas acabaram se estabelecendo dentro do universo de Axie Infinity, incluindo relações trabalhistas inesperadas. Sua jogabilidade tem sido menosprezada por jogadores de países desenvolvidos, mas não funciona como obstáculo para jogadores de países em desenvolvimento. Durante o auge, seu maior mercado estava nas Filipinas, em que o faturamento médio diário de um jogador de Axie Infinity superava o mínimo rendimento salarial diário de um trabalhador convencional. Fenômeno similar se processou na Venezuela em anos recentes, em que a crise econômica diminuiu a tal ponto o poder aquisitivo da moeda local que a moeda digital do MMORPG Runescape estava mais vantajosa e muitos venezuelanos se tornaram “fazendeiros de ouro”, acumulando créditos e revendendo por dólares para jogadores norte-americanos sem tempo disponível.

O que se repete em Axie Infinity é que as criaturas podem ser alugadas para outros jogadores, que não possuem o capital inicial para comprarem monstros fortes o suficiente para gerar renda. No jargão do jogo, essa prática é conhecida como Escolinha. Na Idade Média, poderia ser conhecida como “feudalismo”. Forma-se então uma elite de “jogadores” que compra, reproduz e negocia Axies de alto valor e um baixo clero muito maior de participantes que depende de aluguel e trabalho pesado para um dia adquirir suas próprias criaturas.

Outro sintoma do “play-to-earn” também é velho conhecido: acúmulo de capital. Na teoria, jogadores ganham e gastam SLP dentro do próprio jogo. Desta forma, a moeda circularia e seu volume seria controlado, uma vez que SLPs gastos dentro do jogo desaparecem do mercado. O que está acontecendo é que especuladores acumulam SLPs aguardando o melhor preço para vender para fora do jogo, gerando hiperinflação.

Quebradeira

Axie Infinity

Apesar dos constantes ajustes realizados pela Sky Mavis, incluindo limitadores da quantidade de SLPs que podem ser gerados diariamente, a economia estava em um processo decadente. O jogo começou 2022 perdendo cerca de 40% de seus jogadores/trabalhadores diários. O preço do SLP, que havia chegado a 40 centavos de dólar, estava sendo negociado a 1.8 centavos. Enquanto isso, sua outra moeda, mais importante, o AXS, que chegou a valer US$165, havia caído para US$ 56.

O que estava ruim ficou pior. Em março, um funcionário da empresa caiu em um ataque de phishing oferecendo uma oportunidade melhor de emprego. O ataque serviu de porta de entrada para uma sofisticada ação hacker. Em 23 de março, os cibercriminosos tinham assumido o controle parcial da rede Ronin, o suficiente para desviarem o equivalente a 620 milhões de dólares em criptomoedas.

A espiral descendente apenas se acentuou e Axie Infinity terminou o mês de maio em frangalhos: o valor do AXS caiu para menos de 20 dólares e o preço do SLP estava em meio centavo. Foi necessária uma ação emergencial por parte da Sky Mavis: em 18 de maio, a empresa anunciou um novo aporte de 150 milhões de dólares, desta vez para reembolsar parte das vítimas afetadas pelo ataque hacker de dois meses antes e recuperar os sistemas ainda comprometidos. Uma audiência de 2500 jogadores assistiu o anúncio online e Larsen aproveitou a oportunidade para afirmar que a perda era uma oportunidade para se construir uma comunidade mais forte.

O discurso motivacional não funcionou. Assim que o valor das moedas voltou a subir, a comunidade ficou empolgada. Porém, na primeira queda, começou o processo de acumular fichas novamente, na expectativa de uma nova valorização. O procedimento provoca o fenômeno conhecido como “dragão adormercido”, em que toda a vez que o valor volta a subir, legiões de jogadores buscam vender imediatamente seu acervo, provocando quedas ainda maiores.

Existe uma saída?

Nesse ponto de seu crescimento, Axie Infinity está preso em um dilema: ser um jogo que permite lucros ou ser uma forma de se lucrar com um jogo no meio. A primeira abordagem permitiria atrair jogadores tradicionais em busca de diversão, mas que não abririam mão de faturar algo no final de sua sessão. A segunda abordagem, que prepondera, atrai empreendedores, especuladores e trabalhadores dispostos a maximizar seus investimentos, seja financeiro ou de tempo, em busca de fortuna fácil. Em uma economia decentralizada e carente de regras, o capitalismo se torna selvagem, o sistema sucumbe.

Tentando reverter esse rumo, já em dezembro de 2021, a Sky Mavis trocou o status do jogo de “play-to-earn”, para “play-and-earn”. Uma mudança discreta, mas não menos significativa na busca por uma nova identidade. Logo depois do hack, uma nova tentativa foi colocada em prática: o lançamento da versão alpha de Axie: Origin, uma nova iteração do jogo com gráficos melhorados e, sobretudo, ausente de qualquer tipo de criptomoeda. O objetivo a longo prazo da Sky Mavis é fortalecer a base do novo jogo para fazê-lo suplantar o jogo original e se distanciar dos aspectos econômicos que ajudaram a fundar a empresa.

Entre as mudanças, está a contratação de um novo diretor de produto, Philip La. O novo executivo passou os últimos quatro anos à frente de outro fenômeno cultural, Pokémon Go, e é o autor de um artigo que explica como Axie Infinity pode ser sustentável. Na percepção de La, a economia do jogo está condenada a fracassar na medida em que os jogadores continuarem pensando em si mesmo como investidores: “antes de tudo, Axie Infinity precisa ser um jogo”.

Nesse ponto de cisão, o futuro do Axie Infinity se torna incerto, tanto para jogadores quanto para investidores.