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Desconfiômetro: aprenda a detectar notícias falsas

No dia 12 de Março, a vereadora carioca Marielle Franco (PSOL) foi assassinada próxima ao Centro da cidade do Rio de Janeiro, junto com o motorista do carro que a levava. O crime serviu de estopim para uma comoção nacional e também se tornou um caso emblemático para o estudo do processo de criação e disseminação de notícias falsas, chamadas de fake news.

Dias depois de sua morte, tanto a Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro Marilia Castro Neves quanto o deputado federal Alberto Fraga (DEM-DF) deram voz e volume a rumores divulgados nas redes sociais, sugerindo ligações criminosas entre a vítima e o tráfico de drogas no Rio de Janeiro. Foi apenas uma questão de horas para que os boatos fossem desmentidos, mas a Caixa de Pandora já estava aberta e a repercussão das alegações nunca irá desaparecer por completo.

A Desembargadora confirmou posteriormente que não tinha fontes para suas afirmações e que apenas replicava o que havia lido em uma rede social: “eu postei as informações que li no texto de uma amiga”. Ela agora está sendo investigada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

O Deputado Federal, por sua vez, chegou a apagar sua conta no Twitter após divulgar, sem checar os fatos, que Marielle Franco teria sido casada com um traficante carioca. Em entrevista para a TV, Alberto Fraga admitiu o equívoco: “o arrependimento, talvez, é em ter colocado algo que eu não tenha checado, que não tenha uma informação. Por eu ser um policial, um coronel da polícia, eu deveria ter tido uma informação mais consistente, de uma fonte idônea”.

O que aconteceu tanto com a Desembargadora quanto com o Deputado Federal, descartando eventuais interesses ideológicos, é algo que acontece todos os dias com todo mundo: a propagação de boatos depende de cada um de nós. É muito fácil clicar no botão de compartilhar ou repassar uma “informação” surpreendente ou fantástica ou que vai ao encontro de nossa visão de mundo.

Desde o nosso artigo anterior sobre notícias falsas, o fenômeno apenas se agravou. Vamos tentar agora ensinar como detectá-las, como não se tornar um elo dessa corrente de disseminação, independente de posicionamentos políticos.

Caçador de imagens

Entre a enxurrada de boatos divulgados sobre a vereadora Marielle Franco, figurava, sem uma origem clara desta vez, uma suposta foto que a mostraria mais jovem no colo do traficante Marcinho VP, seu suposto marido. Ignorando o fato que a moça na imagem guardava pouca semelhança com a vítima, a foto ainda sim circulou por grupos de WhatsApp e redes sociais como autêntica.

Exceto que uma pesquisa de menos de dois minutos comprovaria que não havia qualquer relação entre o retrato e a vereadora assassinada.

A foto original foi publicada em 2005, e diz respeito a um tal “cabaré de Jaqueline”, em Pau dos Ferros, no Rio Grande do Norte. Mais: a foto teria sido tirada, na verdade, em 2001. Se a própria distância geográfica não é o suficiente para desmentir a notícia falsa propagada, é bom acrescentar que em 2001 a verdadeira Marielle Franco cursava pré-vestibular comunitário no Complexo da Maré e seria aprovada no ano seguinte para o curso de Ciências Sociais da PUC.

Não é necessário ser um ás do jornalismo ou um detetive virtual para desmascarar uma imagem falsa ou removida de seu contexto original. Para isso, basta vontade e o Google.

Para quem utiliza o navegador Chrome, um clique com o botão direito em qualquer imagem abre um menu de opções, entre elas procurar imagem no Google. Você pode testar agora mesmo com a imagem acima e perceber que o “cabaré de Jaqueline” aparece no topo dos resultados e a foto original vem logo depois.

Em outros navegadores, é sempre possível salvar a imagem a ser investigada no disco rígido e depois enviá-la para o Google Images, para se obter os mesmos resultados. Basta arrastar e soltar a imagem na página para ele pesquisar por ocorrências daquela foto na internet. Também é possível utilizar somente o endereço da imagem e pesquisar.

Outra ferramenta poderosa que pode complementar o Google Images é o TinEye, um mecanismo de busca dedicado somente a identificar imagens similares. O serviço consegue ordenar os resultados por similaridade, tamanho e data, o que permite localizar a primeira aparição de uma determinada foto, por exemplo. Ele funciona de forma similar à ferramenta do Google, permitindo busca por arquivo ou URL, e conta com extensões para  FirefoxSafariOperaChrome e Internet Explorer.

Se tem filmagem, é real?

É fácil pegar uma imagem na internet, recontextualizá-la e afirmar que é verdade. Até mesmo uma adulteração no Photoshop pode ser feita em minutos. Mas e se for um vídeo? Se foi filmado, é real, correto? Claro que não, vídeos virais falsos são um fenômeno ainda mais antigo que as atuais fake news mas acabaram se tornando uma outra face do mesmo problema.

Alan Melikdjanian, ou Captain Disillusion, se especializou em seu canal no YouTube a desmascarar vídeos falsos e oferece uma lista de dicas para identificar filmagens que não são o que dizem ser:

  1. Pergunte a si mesmo: isso é real? É o desconfiômetro em ação e vale para qualquer notícia falsa distribuída na internet. Se algo é sensacional demais, polêmico demais ou perfeito demais, são grandes as chances de ser “bom demais para ser verdade”.
  2. Cheque a fonte. Vídeos estranhos aparecem nas redes sociais o tempo todo, mas é bom verificar suas fontes. Pesquise por vídeos similares e tente localizar sua origem. É um canal com um amplo catálogo de vídeos “bombásticos” sobre temas diversos? É um site que nem domínio próprio tem (usa blogspot, wordpress ou apenas uma página no Facebook)? É um canal do YouTube especializado em efeitos especiais ou animação? Melikdjanian também recomenda o uso de pesquisa reversa de imagem (como ensinamos acima) no thumbnail do vídeo.
  3. Procure por #marcas. Já há um bom tempo que agências de publicidade estão utilizando vídeos virais para promoverem marcas e produtos, sem revelar que o vídeo é falso. Se o canal de origem do vídeo for uma agência ou o canal oficial de uma empresa ou obra de ficção, o mistério está desvendado.
  4. Procure por marcas de fraude. Para quem está realmente interessado em desmascarar um vídeo falso, vale a pena desmontá-lo cena a cena em busca de sinais de adulteração, como desfoques ou fios quase invisíveis nas cenas. Melikdjanian esclarece que é mais prático apagar elementos de uma cena do que acrescentá-los, então também é mais fácil identificar a manipulação por borrões onde o elemento estava ou sombras deixadas para trás.

Tomemos por exemplo, a imagem abaixo:

É um frame de uma suposta filmagem de um submarino-robô na costa da Groenlândia (o país pode variar de acordo com a fonte). Segundo vários vídeos divulgados na internet, sites e blogs, é a prova cabal da existência de humanoides aquáticos, ou sereias. O uso da primeira dica de Melikdjanian já seria o suficiente para não repassar ou acreditar na filmagem, mas ela pode também ser desmentida por outros caminhos.

Uma pesquisa reversa pela imagem encontra uma série de aparições em sites em árabe, inglês e até russo, a vasta maioria alardeando a descoberta. Mantendo o pensamento crítico, é possível encontrar um blog dedicado a desmentir boatos que aponta a origem da imagem: o “documentário” Mermaids: The Body Found, exibido pelo Animal Planet em 2012.

O especial de televisão traz alertas no início e em outros momentos que informam que todo o conteúdo exibido é ficcional ou especulativo, com elementos dramatizados ou criados em computação. O canal foi duramente criticado pelo estilo desse e outros falsos documentários (chamados de mockumentary) por não explicitar ainda mais claramente sua natureza e por abordar temas que fogem completamente do conhecimento científico válido.

Não por acaso, o trecho que exibe a suposta aparição da sereia foi disseminado na internet sem o aviso prévio que aparece antes e com o logo do Animal Planet recortado da tela.

“Só não vê quem não quer”

Se as ferramentas existem e o bom senso também está aí, porque as pessoas repassam sem pensar imagens, textos e até vídeos que não são reais?

Michael Shermer, fundador e diretor da revista “Skeptic”, explica que esse fenômeno pode se dever a dois fatores:  dissonância cognitiva e o chamado efeito contraproducente. Segundo o autor, as pessoas se cercam dos fatos que as interessam, que corroboram seus pontos de vista e os defendem com unhas e dentes, sendo capazes até mesmo de contestar ou questionar quando informações contraditórias são apresentadas.

E cita uma série de experimentos sociais conduzidos por  Brendan Nyhan, do Dartmouth College (EUA), e Jason Reifler, da Universidade de Exeter (Reino Unido):

Os participantes do estudo foram apresentados a falsos artigos de imprensa que confirmavam ideias errôneas, porém muito difundidas, como a de que havia armas de destruição em massa no Iraque antes da invasão norte-americana de 2003. Quando confrontados posteriormente com um artigo que explicava que na verdade essas armas nunca haviam sido encontradas, os que se opunham à guerra aceitaram o novo artigo e rejeitaram o anterior. Entretanto, os partidários do conflito bélico argumentaram que o novo artigo os deixava ainda mais convictos da existência das armas de destruição em massa, pois seria uma prova de que o ex-ditador Saddam Hussein havia escondido ou destruído seu arsenal. Na verdade, dizem Nyhan e Reifler, entre muitos destes últimos participantes “a ideia de que o Iraque tinha armas de destruição em massa antes da invasão encabeçada pelos Estados Unidos persistiu até bem depois de que o próprio Governo de George W. Bush chegasse à conclusão de que não era assim”.

A esses fenômenos, se associa outro igualmente antigo e estudado: o viés de confirmação. Esse conceito é definido como a “tendência de se lembrar, interpretar ou pesquisar por informações de maneira a confirmar crenças ou hipóteses iniciais. É um tipo de viés cognitivo e um erro de raciocínio indutivo. As pessoas demonstram esse viés quando reúnem ou se lembram de informações de forma seletiva, ou quando as interpretam de forma tendenciosa. Tal efeito é mais forte em questões de forte carga emocional e em crenças profundamente arraigadas. As pessoas também tendem a interpretar evidências ambíguas de forma a sustentar suas posições já existentes”. O grifo é por nossa conta e serve para realçar o papel que esse desvio exerce em nossa propensão de divulgar sem checar, de espalhar sem conferir, de disseminar notícias falsas que passam ilesas por nosso desconfiômetro. Por esse motivo, apontamos para notícias verdadeiras e as chamamos de fake news, compartilhamos boatos e chamamos de “bomba!”.

Contra tais mecanismos internos, não há uma ferramenta online que dê conta. Pensando nessa problemática, a Universidade de Washington, nos Estados Unidos, realizou no ano passado um curso batizado de “Calling Bullshit: Data Reasoning in a Digital Word“. A bibliografia completa está disponível online (em Inglês), assim como os vídeos das aulas completas para quem deseja identificar e refutar falsidades divulgadas na internet.

Em um ano eleitoral, em um momento em que a nação encontra-se fortemente polarizada em suas bolhas ideológicas, é importante exercitar a desconfiança, checar fontes e colocar a mão na própria consciência. Independente de centro, esquerda, direita ou qualquer outra denominação política, as notícias falsas poderão exercer uma influência devastadora no processo democrático. Para que isso aconteça, basta um clique.