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Pós-Verdade ou A Invasão das Notícias Falsas

“Stênio Garcia morreu?”, me pergunta minha esposa, depois de ler a notícia no Facebook e esperando minha confirmação. Cinco minutos de Google depois, o ator passa bem, obrigado.

“Michael Schumacher morreu?”, me pergunta ela em outra ocasião, novamente vinda de uma notícia do Facebook. Outros cinco minutos de Google depois, o piloto está vivo, embora a manchete de sua suposta morte ainda seja o segundo resultado de uma pesquisa por “Schumacher morreu”.

"Disco-Voador Colidiu Com Ônibus Na BR-116"E outros casos… na linha do tempo dela funciona uma máquina de matar famosos, compartilhando lutos que não existem, curtidas sem sentido, compartilhamentos do tipo “vai que é verdade”. São as tais notícias falsas do Facebook que, por sua vez, também se tornaram assunto de manchetes e podem ser culpadas até pela surpreendente eleição de Donald Trump para a presidência dos Estados Unidos.

Não por acaso, o tradicionalíssimo Dicionário Oxford escolheu “Pós-Verdadeiro” como a Palavra do Ano de 2016. O que é algo “pós-verdadeiro”? Segundo a definição do próprio Oxford, é um adjetivo “relacionado a ou denotando circunstâncias em que os fatos objetivos são menos influentes em moldar a opinião pública do que apelos a emoções e crenças pessoais”. É basicamente a teoria de que a verdade é menos importante do que o impacto emocional ou a velha máxima de “não deixar a verdade estragar uma boa história”.

A origem do termo foi identificada em um artigo publicado em 1992, um ensaio sobre o impacto do escândalo do Irã-Contras durante a Primeira Guerra do Golfo, escrito pelo roteirista Steve Tesich para a revista The Nation. De uma maneira resumida, descobriu-se que militares de alta patente dos Estados Unidos traficavam armas para o regime iraniano para financiar guerrilhas na Nicarágua. Fatos foram atropelados, a opinião pública foi inflamada para ambos os lados da retórica e Tesich afirmou que “nós, como um povo livre, livremente decidimos que queremos viver em algum tipo de mundo pós-verdadeiro”.

Estava cunhado um termo para um estado que já existia.

"Hillary Clinton Adota Bebê Alien (Foto Oficial)"

A culpa é de quem?

Então, atribuir esse estado de coisas ao Facebook é “atirar no mensageiro”, para utilizar outra expressão antiga. Com mais de um bilhão de usuários mensais, a rede social reúne em um único lugar uma em cada seis pessoas no mundo, excluindo-se da equação somente os muito novos, os muito idosos, aqueles que não tem acesso digital e um ou outro eremita. É óbvio ululante que nossa tendência humana, quase fascínio pelo pós-verdadeiro iria se manifestar nessa gigantesca ágora moderna sem lei.

Ainda assim, o Facebook se viu encurralado em uma situação constrangedora. Inicialmente, a rede social foi acusada de interferir demais nos resultados do que virava tendência em sua linha do tempo. Levantou-se a suspeita de que a empresa estaria permitindo que ideologias pessoais influenciassem o que poderia ou não ser exibido para os usuários. Comenta-se nos bastidores (e encare isso como uma pós-verdade se quiser, na ausência de fontes à mão) que sites de direita publicavam um maior número de falsas notícias e seu banimento estaria, por consequência, afetando o equilíbrio político do teor das notícias que apareciam.

"Bebê-Diabo Nos Telhados Das Casas do ABC"

O Facebook escolheu então eliminar o elemento humano da equação e deixou a curadoria das notícias por conta dos algoritmos, que se mostraram tão ou mais falíveis que os editores anteriores. O resultado foi uma notícia completamente falsa, inventada por um site de direita conservadora, alcançando o topo dos compartilhamentos na rede social. Havia uma notícia sobre um homem fazendo “saliência” com um hamburguer do McDonald’s também entre as mais populares nos Estados Unidos, mas isso é apenas a cereja do bolo.

E engana-se quem pensa que essa é uma realidade exclusiva dos norte-americanos.

Não se sabe ao certo como o Facebook resolveu a questão nos meses seguintes. Mas a vitória de Trump fez os olhos do mundo se voltarem… para o mensageiro. Zuckerberg foi categórico: “eleitores tomaram suas decisões baseados em suas experiências de vida”. O que também pode ser aplicado às notícias falsas: as pessoas escolhem acreditar, a isca do ultraje é engolida, ou, como escreveu Tesich 24 anos atrás, “livremente decidimos que queremos viver em algum tipo de mundo pós-verdadeiro”.

Zuckerberg, porém voltou atrás e resolveu implementar novas ferramentas para monitorar conteúdo falso ou malicioso na rede social. Afinal, nada melhor do que substituir o bom senso que deveria ser inerente a cada indivíduo pela tutela onipresente de uma empresa capaz de ver e analisar tudo que é publicado para decidir, baseado em critérios que não são transparentes, o que deve ou não deve ser lido por você. Troca-se seis por meia dúzia.

Combatentes da verdade

O site Snopes foi fundado em 1995. Mark Zuckerberg tinha 11 anos nessa época e provavelmente só pensava em desenhos animados. Mas o Snopes estava lá desmistificando histórias falsas na internet, boatos, rumores e lendas urbanas. Nascido de um grupo de Usenet e montado pelo casal Barbara e David Mikkelson, o site tem mais de 20 anos dedicados a um problema que parece inesgotável e imemorial.

"Fotos Impressionantes de Satélite Confirmam... (Bombardeiro Antigo na Lua)"

No período de um ano, na era do Pós-Verdadeiro, o tráfego do Snopes cresceu 85% e atingiu a marca de 13.6 milhões de visitantes únicos em Outubro, no pico da campanha eleitoral dos Estados Unidos. Com a explosão das notícias falsas, cresce também o interesse em desmascará-las, aparentemente.

Para Brooke Binkowski, uma das editoras que verificam diariamente as denúncias que chegam ao Snopes, o problema da vitória de Trump não está no Facebook. “Não é a mídia social que é o problema. Pessoas estão procurando por alguém para culpar. A nova direita vem sendo empoderada e não vai sumir tão cedo. Mas eles também sempre estiveram por aí”, afirma ela que já tem experiência em desmentir rumores plantados, intencionalmente ou não, por radicais de direita. Mas também há boatos de esquerda, boatos sem fins políticos, boatos de todos os tipos.

Segundo a editora, há uma crise de credibilidade na mídia tradicional. Os veículos de antigamente não trazem mais todas as respostas que as pessoas querem ouvir ou estão sucateados, com redações conduzidas por profissionais sobrecarregados ou com baixa qualificação, sem um editor por perto. O resultado é que os fatos se desvalorizam.

Mas qual seria a solução para essa Invasão das Notícias Falsas? Binkowski sustenta que “honestamente, a maioria das notícias falsas são incrivelmente fáceis de desmascarar por que são uma babaquice óbvia”. Nada que sobreviva àqueles tais cinco minutos de busca no Google ou mesmo a um olhar mais cético. Seu trabalho, às vezes, parece como varrer a areia da praia, mas ela não desiste: “a única coisa que nós estamos fazendo que nós podemos realmente continuar fazendo é apenas contar a verdade de novo e de novo e de novo e de novo e de novo, e simplesmente continuar fazendo isso”.

Velho Poe ou uma conclusão que não conclui muita coisa

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Enfim, para aqueles que ainda acreditam que esse problema é de hoje ou que nasceu no Facebook, fica a imagem acima como encerramento. “Notícias impressionantes! O Atlântico cruzado em três dias! Um sinal de triunfo da máquina voadora do senhor Monck Mason!!!”, com direito a três pontos de exclamação no final da frase, para aumentar a carga dramática.

Apenas que nunca houve um senhor Monck Manson ou sua fantástica máquina voadora. O chamado “Boato do Balão” é uma invenção do escritor Edgar Allan Poe, um dos pais da literatura de suspense. E isso em 1844, quando o bisavô de Mark Zuckerberg possivelmente nem tinha nascido (carece fontes). A verdadeira travessia do Atlântico em um veículo voador ainda demoraria outros 75 anos, mas a ideia foi comprada e certamente curtida  e compartilhada por muitos leitores, da forma como as pessoas curtiam as coisas no século retrasado.