Olhando para os lados hoje e vendo a forma como consumimos música e vídeo no mundo digital, é difícil imaginar nossa vida moderna sem a existência do YouTube, da Netflix, do Spotify. Mas nos anos 90 nada disso tinha sido criado ainda e quem mandava era a a Real Networks.
Durante o alvorecer da web, o RealPlayer e sua tecnologia de streaming eram a única opção para tentar assistir conteúdo multimídia em tempo real e seus criadores foram pioneiros em um mercado que explodiu hoje. De onde eles vieram? Como a Real se tornou um gigante? E, principalmente, onde a empresa está agora?
Ascensão
Tudo começou com Robert Glaser. Nascido em um subúrbio de classe média na cidade de Nova York, cresceu a cinco quadras de distância do estádio oficial dos Yankees e nunca imaginaria enquanto garoto que sua história de cruzaria com a do famoso time de futebol, até por ser torcedor dos pequenos mas valentes Mets.
Filho de ativistas políticos, cresceu cercado de ideias progressistas e já adolescente distribuía panfletos sobre greves ou promovia campanhas pelo desarmamento. Suas convicções foram transportadas para a Universidade, onde participou do grêmio estudantil e do jornal da faculdade. Saiu de Yale com um Bacharelado em Economia, um Bacharelado em Ciência da Computação e um Mestrado em Economia.
Saiu de lá para os braços da Microsoft, então uma pequena startup do outro lado do país. Em dez anos na empresa, foi um dos responsáveis pela criação do Word, antes de mudar de área, para o setor que mudaria sua vida e a face da internet: rede. Sua terceira posição também ajudaria a forjar seu futuro, dentro da divisão de multimídia da Microsoft.
Com o conhecimento acumulado e a mente fervilhando, Glaser sentiu que era hora de fundar seu próprio negócio e saiu da Microsoft. Juntou-se com alguns amigos e aplicou todo o seu capital acumulado na criação da Progressive Networks em 1994. Sua meta era criar uma rede de distribuição digital do pensamento progressista e, para isso, desenvolveu uma tecnologia de streaming até então inédita.
Bastaram alguns meses para os investidores e seus próprios fundadores se derem conta que o programa e a plataforma que haviam desenvolvido eram muito mais promissores que o próprio conteúdo. Nascia o ecossistema do RealPlayer e, no ano seguinte, a Progressive Networks estabeleceu um marco histórico ao realizar a primeira transmissão online de um jogo ao vivo, uma partida de baseball entre os Seattle Mariners e aqueles mesmos Yankees de Nova York que Glaser esnobara quando garoto.
Glaser enxergou ali uma internet futura dominada por distribuição maciça de conteúdo em áudio e vídeo tão logo a banda larga se tornasse comum. E sua Progressive Networks estava com a tecnologia pronta para abraçar esse futuro, mesmo que em 1995 um modem de 56K fosse o mais veloz que um usuário doméstico tinha nos Estados Unidos.
Ele não era o único a compartilhar essa visão: em 1996, Glaser e Bill Gates selavam um acordo que permitiria que o software de streaming RealPlayer fosse distribuído com cada instalação do Internet Explorer.
No ano seguinte, a empresa mudou seu nome para RealNetworks, deixando para trás seu passado progressista e adotando a marca de seu produto mais poderoso. Logo depois, fez seu IPO na bolsa, na esteira de uma bem-sucedida parceria com a Microsoft, que incluía licenciamento de tecnologia e a posse de 10% das ações das RealNetworks.
Em 1999, 85% de todo conteúdo de áudio e vídeo transmitido pela internet era transmitido através de tecnologia da RealNetworks.
Queda
“Se você olhar para o que o Real poderia ter sido, poderia ter sido o YouTube”, disse Steve Banfield, ex-vice-presidente de relações estratégicas do Real. “Por que não foi criado o Real Netflix?”. As respostas para a queda da RealNetworks e sua plataforma não são simples e talvez não possam ser vinculadas a um único motivo.
Um dos pivôs de sua derrocada foi a insistência da empresa em um modelo de negócios baseado no licenciamento de sua tecnologia para servidores. Enquanto o cliente RealPlayer era oferecido gratuitamente ou distribuído em larga escala através do próprio Windows, empresas interessadas em transmitir seu conteúdo de forma digital pagavam caro pelo serviço.
José Luis Cabañero Gutiérrez, que também fez parte do quadro de profissionais da empresa, aponta a Microsoft como a principal vilã. Segundo ele, a empresa, anteriormente parceira, “mudou-se para o mercado com a) um cliente de streaming embutido em cada máquina Windows b) capacidades de software de streaming embutidas em servidores Windows virtualmente sem custo para empresas de hospedagem c) seu próprio formato de mídia que era decente em uso de qualidade / largura de banda”. O Windows Media Player e sua plataforma vieram para competir e a competição foi pesada.
Com a principal fonte de renda sofrendo perdas sistemáticas, é fácil compreender outro erro cometido pela RealNetworks em relação ao seu produto: publicidade e invasão de privacidade. A cada nova iteração do RealPlayer, o programa se tornava mais lotado de funções que ninguém queria, anúncios publicitários, alterações indesejadas no registro do sistema e, para espanto de muitos, espionagem. Em 1999, o pesquisador de segurança Richard M. Smith descobriu que o programa atribuía um código identificador para cada usuário e transmitia para os servidores da empresa suas preferências musicais, seus hábitos de consumo e a listagem completa dos arquivos disponíveis em sua biblioteca.
Paralelamente, a percepção pública da qualidade do RealPlayer estava se modificando: projetado para uma velocidade de internet que ainda não existia, o programa entregava uma experiência de streaming caracterizada por longos períodos de carregamento, vídeos granulados e áudio cortado. Esse era um problema que estava além do alcance de seus desenvolvedores, embora seu codec proprietário tenha uma parcela de culpa, mas isso não impedia que seu time de marketing tentasse alavancar o RealPlayer e todo seu ecossistema como uma fulgurante viagem multimídia.
O resultado de todos esses fatores era que, em 2001, o número de usuários mensais do programa da Microsoft era mais do que o dobro do número de usuários do Real Player.
Ocaso
Ou talvez todos os problemas da RealNetworks possam ser traçados até uma única origem. E essa origem também se chamava Rob Glaser. Nas palavras de Banfield, “Rob realmente é um cara ótimo, um cara super afiado. Sua agressividade, independentemente da origem, serviu-lhe bem. Mas se ele tem um ponto fraco, é seu foco em sua própria visão para a exclusão de ouvir os outros. Se ele tivesse ouvido os outros ao longo dos anos, talvez a empresa pudesse ter feito muitas coisas diferentes”.
Sob o comando de Glaser, a RealNetworks atirou para muitos lados. O RealJukebox pretendia administrar a biblioteca de arquivos de mídias de seus usuários e vinha com uma controversa tecnologia de ripar CDs. O portal Real.com oferecia conteúdo licenciado de canais de televisão. O Rhapsody foi comprado pela empresa como uma alternativa de serviço de streaming de música batizada obviamente de RealRhapsody. O RealArcade foi uma tentativa de emplacar uma plataforma de jogos sob demanda. Além disso, havia também a RealPlayer Music Store. Eram muitas frentes diferentes para competir com gigantes no mercado e a empresa de Glaser não estava vencendo em nenhuma delas.
Em 2005, uma disputa judicial entre a RealNetworks e a Microsoft que já se arrastava por anos terminou com vitória para a primeira. A Microsoft se viu obrigada a pagar nada menos que 460 milhões de dólares em indenização para a RealNetworks em uma ação antitruste.
Semelhante aporte de capital seria suficiente para alavancar qualquer empresa à estratosfera. Nos bastidores, comenta-se que o dinheiro foi utilizado perseguindo produtos que davam prejuízo ou que não veriam a luz do dia.
Um desses baques foi o RealDVD, um programa capaz de ripar DVDs e armazenar seu conteúdo na biblioteca do usuário. O objetivo era livrar o usuário da obrigatoriedade de ficar trocando discos em um aparelho para assistir vários filmes em sequência. Sua criação teria sido um pedido pessoal de Glaser, depois de uma tumultuada gestação de sua esposa, quando ela ficou acamada por um longo período vendo filmes em DVD. Ainda que nobre em suas intenções, o RealDVD esbarrou na forte oposição da indústria cinematográfica, que via ali uma ferramenta de pirataria.
Glaser insistiu no desenvolvimento, insistiu em ir à Justiça combater os processos movidos pelos grandes estúdios, e terminou com uma amarga derrota calculada em torno de 20 milhões de dólares por um produto que não pôde vender.
Para Kevin Foreman, ex-gerente geral da unidade de negócios móvel da Real, “Rob era um grande líder, mas ele não era o melhor gerente… Com toda a justiça, a Real provavelmente perdeu algumas oportunidades. Nós provavelmente tentamos fazer muito e deveríamos ter feito menos coisas mas melhores”.
Para todos os fins, o RealPlayer ainda existe em sua versão 18. Além do tocador de mídia tradicional, ele ainda apresenta integração com o serviço de armazenamento na nuvem RealTimes, se integra com o navegador para facilitar o download e conversão de conteúdo disponível no YouTube e outrso serviços de streaming, administra sua biblioteca de mídia e permite a gravação e cópia de CDs de música.
A sede do consumidor por streaming nunca cessou, apenas aumentou com a oferta de mais e melhores conteúdos. O RealPlayer cedeu lugar ao Windows Media Player, que cedeu lugar ao Adobe Flash, que foi substituído pelo HTML 5.