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Piscando na tela: a história praticamente esquecida de Charles Kiesling

Você já viu essa cena no cinema: um hacker ou qualquer pessoa com o mínimo de conhecimento de computador contempla seu monitor, indeciso sobre como começar, enquanto um cursor (geralmente verde na tela negra) pisca inquieto. Não precisa ir para a ficção: no exato momento em que escrevo esse artigo, a cada pausa para pensar na palavra seguinte, ele está lá também, um cursor piscando na tela marcando onde parei. O cursor que pisca faz parte de nossas vidas, invadiu nosso imaginário, sempre inquieto, sempre aguardando nossa ação, como um serviçal da era da informática.

No entanto, nunca dedicamos um minuto de nosso tempo para pensar de onde ele veio. Quem criou esse conceito? Por que ele pisca? Que convenção foi essa que resiste a décadas de evolução das interfaces de usuário? A resposta está na história praticamente perdida de Charles Kiesling.

Da guerra para a História

Charles Kiesling, na Marinha

Charles Alan Kiesling Senior viu a guerra de perto. Ele fez parte da tripulação do USS Collette DD 730, um destroyer norte-americano, durante a Guerra da Coreia. Seu navio fez parte do lendário esquadrão “Patos Sentados”, que teve uma missão importante durante o conflito: servir de alvo para a artilharia inimiga. Essa situação arriscada foi uma tática utilizada para identificar a posição dos canhões norte-coreanos antes de um ousado desembarque anfíbio. Seis embarcações ancoraram perto da cidade de Inchon e funcionaram como isca.

Durante uma hora, canhões norte-coreanos, morteiros e até armas leves foram disparados da costa para tentar afundar os navios. O Collete foi atingido nove vezes, perdeu seu sistema computadorizado de mira e operou manualmente durante o resto da operação, mas não afundou.

As marcas deixadas pela guerra nunca abandonaram as memórias de Charles Kiesling e ele seguiu se reunindo com os veteranos de seu esquadrão durante décadas. Porém, foi seu trabalho como engenheiro eletrônico na gigante dos mainframes Sperry Rand que lhe rendeu um lugar pequeno, mas permanente, na História.

Foram 38 anos dedicados à Sperry Rand (atual Unisys). Nessas quase quatro décadas, o engenheiro desenvolveu alguns dos primeiros sistemas de rede de computadores e os circuitos de expansão lógica para sistemas de exibição, o que poderia ser chamado de primeiras placas gráficas. Ainda assim, de todo esse período, uma invenção permaneceu imutável: a patente US3531796A, de 1967, o cursor que pisca.

Em 1993, Charles se aposentou e passou os últimos anos de sua vida no completo anonimato. Ele faleceria em 2014, aos 83 anos.

Um sinal na escuridão

Para entender o impacto do cursor piscando, é necessário entender os primórdios dos editores de texto. O primeiro passo para sair do método analógico fruto de Guttenberg, que vinha sendo praticado por séculos, e entrar na era digital era o chamado teletipo. Simplificando seu funcionamento, era pouco mais do que uma máquina de escrever acoplada a um monitor. Portanto, da mesma forma que uma máquina de escrever, seu usuário sempre sabia em que ponto estava a digitação: ela estava onde você havia parado.

Do teletipo para o editor de texto propriamente dito foi um salto gigantesco. Pela primeira vez, era possível inserir texto na posição que se queria sem precisar desfazer tudo que tinha sido feito antes. O ponto de edição estava livre para ser posicionado em qualquer posição. Entretanto, surgiu um novo problema: código-fonte com instruções e texto propriamente dito se misturavam na tela. Navegar por aquela confusão era uma tarefa árdua quando você não tinha um indicador claro de onde era possível editar.

Era essa a solução proposta por Kiesling, um sinal na escuridão que apontasse, de forma quase gritante, onde estaria o alvo do usuário. A licença poética nos permite estabelecer uma ponte entre a invenção do cursor e aquela tarde infernal com o esquadrão “Patos Sentados”. Em uma praia em que não se sabia onde estava a artilharia inimiga, foi o fogo de seus tiros que entregou suas posições, o grande clarão no litoral. Kiesling precisava de um clarão na tela.

Nas palavras da patente US3531796A:

Os sistemas de display alfanuméricos estão se tornando cada vez mais importantes nos sistemas de comunicação homem-máquina. Os sistemas incluem um tubo de raios catódicos sobre o qual o operador, por meio de um teclado, ou o computador podem inserir caracteres alfanuméricos. Se o operador estiver digitando os caracteres alfanuméricos por meio do teclado, ele deve ter algum meio para determinar onde o próximo caractere deve ser digitado na tela do CRT. Além disso, uma vez que a tela contém uma mensagem completa, seja digitada pelo operador ou pelo computador, o operador deve ter recursos de edição para inserir ou excluir caracteres. Isso também exigirá alguns meios para permitir que o operador determine onde o feixe está localizado para que a edição possa ser realizada.

(…) tanto o símbolo de caractere quanto o caractere normal sobre o qual ele aparece são exibidos em intensidade normal apenas metade do tempo. A aparência alternada dos dois símbolos faz com que a posição assuma uma aparência piscante

A Apple, sempre a Apple, popularizou o conceito

Em sua primeira década, o cursor piscante ficou confinado aos mainframes. O fato do mouse ter sido criado alguns anos antes, assim como as setas direcionais, ajudaram a invenção de Kiesling a se tornar um recurso indispensável, ainda que restrito a determinados usuários. Coube à Apple trazer a funcionalidade aos computadores domésticos, em 1977, com o Apple II.

Nesse ponto, foi a visão de Steve Wozniak que permitiu que o cursor piscante fosse implementado. O Apple II não trazia caracteres em caixa baixa, mas trazia caracteres piscantes onde estaria o cursor. Foi uma decisão tomada por Wozniak, dada a limitação de memória de seu chip e suas próprias limitações financeiras. O engenheiro da Apple preferiu introduzir o recurso de Kiesling a oferecer caracteres em caixa baixa para seus usuários. Na mesma época, Steve Jobs estava obcecado pelo mouse e insistia que o cursor fosse movido somente pelo mouse, não pelas setas direcionais. Os dois estavam certos sobre a mudança de paradigma que viria.

Um clone do Apple II, mas o cursor está lá e você consegue imaginá-lo piscando…

Reza a lenda que Charles Kiesling não ficou contente quando viu sua invenção disponível no computador doméstico da Apple. Entretanto, como funcionário da Sperry Rand, preferiu deixar que a empresa cuidasse dos trâmites legais.

A presença do cursor piscante no Apple II combinou com o momento exato do lançamento do WordStar, o primeiro processador de texto comercialmente popular. Dali em diante, o nada discreto invento de Charles Kiesting conquistava seu lugar indelével no cotidiano de todo mundo. Ainda assim, é algo ao qual não dedicamos a devida atenção.

Karl MacDorman, professor de interação humano-computador na Universidade de Indiana, nos Estados Unidos, sintetizou ao mesmo tempo a aparente insignificância do cursor piscante e sua perenidade:

Muito do bom design de HCI [Interação Humano-Computador] é sobre a interface que permite que o usuário trabalhe de forma eficaz. Não é realmente projetado para fazer o usuário sentir alguma coisa, exceto talvez no controle. Um bom design de HCI permite que o usuário se concentre no trabalho, não na interface.