Synthetic Training Environment
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Synthetic Training Environment: o metaverso secreto do exército norte-americano

Em 1969, surgia a Advanced Research Projects Agency Network, mais conhecida por sua sigla: ARPANET. Era uma rede de computadores criada para transmissão de dados militares sigilosos e interligação dos departamentos de pesquisa dos Estados Unidos. O objetivo do Pentágono era ter uma estrutura descentralizada capaz de operar independente da destruição de alguns de seus componentes, um sistema de comunicação e troca de dados que continuaria funcionando mesmo em um hipotético holocausto nuclear. Era fundamental que o Estado continuasse ativo diante do mais apocalíptico dos cenários.

Felizmente, a ARPANET jamais exerceu seu objetivo inicial. Entretanto, ela foi a pedra fundamental para uma rede civil de computadores que acabaria por abranger o mundo inteiro com os mesmos princípios de descentralização e resiliência e com protocolos abertos, mas unificados. Da ARPANET, emergiu a Internet. O ano de 1983 é considerado o marco zero dessa transição, com a introdução do protocolo de comunicação TCP/IP.

É importante conhecer o passado da tecnologia porque ele pode estar se repetindo nesse exato momento. Enquanto a Meta e outras empresas lutam por tentar criar um padrão para o Metaverso, um sonho antigo de entusiastas e corporações, as Forças Armadas dos Estados Unidos, com um orçamento quase sempre próximo do infinito, já estão adiantadas no desenvolvimento de um metaverso específico para suas necessidades: o Synthetic Training Environment (STE).

O que é o Ambiente de Treinamento Sintético?

O programa Synthetic Training Environment (STE, ou Ambiente de Treinamento Sintético, em Português) está em desenvolvimento desde 2017, muito antes de Mark Zuckerberg mirar os canhões de sua empresa em direção a realidades virtuais. Originalmente, o objetivo do STE não era desenvolver um “metaverso”, no conceito zuckerberguiano da tecnologia, mas substituir todos os programas de simulação e treinamento legados das Forças Armadas dos Estados Unidos, considerados obsoletos. O metaverso do STE emerge a partir do momento que o projeto pretende integrar todos os sistemas existentes em um único ambiente conectado para as diferentes forças.

Outra característica que aproxima o STE do que passamos a chamar de metaverso é sua ambição de produzir um digital twin, um “gêmeo digital” da superfície da Terra em proporção 1:1. Essa gigantesca simulação tática foi batizada de One World Terrain (OWT). O conceito utilizaria arquitetura de nuvem para oferecer dados de terreno com realidade fotográfica em alta fidelidade para todas as simulações que fazem parte de seu sistema. Desta forma, fuzileiros aquartelados em Chicago seriam capazes de treinar em uma réplica em Realidade Virtual de uma rua no Afeganistão, recebendo os mesmos dados que operadores de um simulador de tanque situado em uma base da OTAN na Alemanha estariam recebendo. Desta forma, cada prédio, cada veículo estacionado, cada poste na rua seria visualizado simultaneamente por todos interagindo nesse pedaço do metaverso militar.

O Ambiente de Treinamento Sintético foi projetado para ser uma ferramenta de treinamento, não uma ferramenta para o campo de batalha em si. Sua meta é permitir que os soldados conheçam o terreno de uma operação com antecedência, realizem testes e encenem missões.

“O treinamento é a única vantagem assimétrica que temos sobre nossos adversários. Precisamos ter certeza de que estamos usando todos os avanços tecnológicos que existem na indústria hoje para transformar nossa força de combate”.

Brig. Gen. William Glaser, diretor da Equipe Multifuncional do Ambiente de Treinamento Sintético do Comando Futuro do Exército

Um time de 26 especialistas está desenvolvendo e testando os sistemas de treinamento sintético em uma instalação de ponta em Orlando, na Flórida. Nesse local, o grupo de trabalho também recebe a colaboração de parceiros da indústria bélica, que demonstram novos produtos que podem ser integrados ao projeto; soldados, que avaliam os programas de treinamento militar; e líderes da cadeia de comando, que obtém acesso aos avanços da tecnologia e suas aplicações futuras para o nível de preparo das forças.

Glaser explica que essa proximidade com a comunidade afetada é importante para a evolução do projeto dentro das Forças Armadas: “a chave é a capacidade de construir rapidamente o terreno e o ambiente operacional no STE e entregá-lo rapidamente ao combatente. Os líderes podem então usar o STE para realizar reconhecimento, jogos de guerra e ensaios”.

No futuro, a implementação do STE será imperceptível. O seu metaverso será praticamente onipresente dentro do contexto militar, como a própria cadeia de suprimentos. Nas palavras da Major General Maria Gervais: “de onde quer que estejam – base, arsenais, instituições ou locais implantados – queremos que nossos soldados entrem em um ambiente de treinamento sintético que os envolva em diversos ambientes operacionais complexos que se reproduzam onde lutarão; com quem eles vão lutar; no terreno em que vão lutar”.

Vários problemas, uma solução

A necessidade de desenvolver o STE nasceu de um problema muito conhecido de quem lida com tecnologia: falta de interoperabilidade entre as soluções existentes. Os programas de treinamento utilizados pelas Forças Armadas dos Estados Unidos eram casulos fechados em si mesmos, que não favoreciam a sinergia que emerge no campo de batalha. Em outras palavras, eram obsoletos, vinculados a sistemas proprietários defasados e de difícil atualização ou customização. Havia uma demanda por uma solução que integrasse os domínios da logística, medicina, engenharia e transportes ao cenário de guerra.

Um dos exemplos de obsolescência podia ser encontrado no sistema Multiple Integrated Laser Engagement System (MILES), com décadas de operação, para exercícios de infantaria. O sistema é considerado dispendioso pelos padrões militares, exige um tempo de configuração excessivo, carece do realismo desejado e pode provocar o surgimento de hábitos nocivos nos soldados. Uma das falhas do sistema é desconsiderar quando os soldados se protegem atrás de coberturas finas. O sistema de rastreio de projétil do MILES não registra o acerto através dessas coberturas, mas um projétil na vida real atravessaria com facilidade essas coberturas. Outro problema do MILES é que seu marcador a laser viaja em linha reta, enquanto balas de verdade são regidas por curvas balísticas.

Os sistemas atuais de treinamento virtual das Forças Armadas também exigem a utilização de instalações especiais no mundo físico, enquanto o STE irá fornecer recursos melhores em qualquer ponto do planeta através de computação da nuvem. No jargão militar, a ferramenta estará disponível nos “pontos de necessidade”, se integrando com as redes operacionais e táticas já existentes. Desta forma, o STE pode ser acessado a partir de dispositivos móveis dos soldados, estações de trabalho, plataformas de combate ou acampamentos.

Como funciona o Synthetic Training Environment?

Evidentemente, os detalhes mais técnicos do funcionamento do STE são mantidos sob sigilo militar, mas seus princípios gerais são de conhecimento público, mesmo porque o sistema aparentemente não emprega nenhuma tecnologia revolucionária. A base de tudo é a escalabilidade de nuvem, que computa recursos de dados do mundo físico para renderizar milhões de entidades simuladas, desde particularidades do terreno até unidades baseadas em Inteligência Artificial, como a população civil ou veículos. Servidores tradicionais nas premissas não seriam capazes de representar a complexidade dos mapas ou a densidade populacional almejada pelos militares.

Um dos princípios do ecossistema do STE é aproveitar o hardware comercial pronto para uso disponível no mercado, assim como o hardware governamental que já se encontra instalado, integrando no que for possível. Desta forma, o STE é uma solução de software rodando na nuvem e não deve exigir a produção de hardware personalizado.

Outro pilar do STE está em seus algoritmos de Inteligência Artificial e Aprendizado de Máquina, que precisam simular todos os elementos de um cenário de batalha, desde movimentação de tropas, ameaças inimigos e fatores de stress sobre as forças aliadas. Esse último ponto é um componente fundamental do processo, que estava ausente nas soluções anteriores: há uma forte preocupação das Forças Armadas em relação à resposta emocional das tropas em cenários desafiadores e realistas. Dados detalhados são coletados e reutilizados, sobre como os soldados reagem sob pressão intensa, para alavancar necessidades de treinamento e planejamento futuros, reajustando o próprio simulador.

A Inteligência Artificial classificará e apresentará múltiplos dados (incluindo o campo de batalha, clima, precisão, letalidade e biometria), para gerar uma simulação muito próxima do mundo físico. Entretanto sua característica mais importante é que todo o processo será atualizado continuamente por meio de Aprendizado de Máquina, usando uma análise preditiva dos dados que coleta.

Novamente, essa dinâmica irá representar um salto tecnológico em relação às soluções atuais disponíveis para as Forças Armadas norte-americanas. Seu simuladores atuais trazem inimigos com ações pré-programadas e respostas fixas, enquanto oponentes do mundo real são estatisticamente imprevisíveis. A utilização de modelos de Inteligência Artificial através do STE trará oponentes capazes de aprender e se adaptar, apresentando desafios mais próximos do que o soldado irá encontrar no mundo físico. Através do treinamento intenso, o soldado aprenderá a improvisar em tempo real, ao invés de aprender a “vencer o jogo” de inimigos com comportamento pré-programado..

Parceiros internacionais estão desenvolvendo tecnologias projetadas para serem compatíveis com o One World Terrain (OWT). Nesse momento, a israelense CT-MENTOR está sendo integrada ao esforço coletivo de desenvolvimento do STE. Seu sistema de mapeamento para navegação e direcionamento em ambientes sem GPS é capaz de utilizar arquitetura aberta projetada para receber materiais de mapeamento de outros sistemas, incluindo OWT. O que vemos aqui é o desenvolvimento de protocolos e padrões a serem seguidos dentro da indústria bélica, que favorecerão o surgimento de um único metaverso, ao qual os parceiros e terceirizados terão que se adaptar para se integrar.

Desafios para a implementação

Um dos maiores obstáculos para STE atingir seus objetivos está na representação do terreno físico. O volume de dados a serem analisados é astronômico. Filmagens aéreas ou de satélite de terrenos precisam gerar muros e prédios representativos de forma acurada, com a dificuldade de se intuir ou prever o tipo de material que os compõem, para oferecer a resposta correta de acordo com o tipo de munição que atinge sua superfície. O Exército está desenvolvendo ainda uma Inteligência Artificial específica para lidar com esse problema. Ainda assim, a guerra urbana praticada na modernidade frequentemente lida com terreno denso de escombros ou operações em redes subterrâneas quase impossíveis de se replicar com dados muitas vezes incompletos de zonas de acesso inviável.

Outro desafio para as Forças Armadas norte-americanas está em características de rede que podem não ser adequadas para o funcionamento perfeito do STE. Alta latência e segurança eletrônica são empecilhos que precisam ser mitigados. O cálculo oficial é que o STE exija uma conexão de 50 megabits por segundo, por soldado. Além disso, o consumo de banda do sistema não pode sobrecarregar as redes militares existentes, principalmente em zonas de operação, em que a banda já é limitada por razões de conflito. A solução empregada está sendo a computação de borda, que funciona como um complemento essencial para a nuvem. Essa estratégia permite o processamento de dados onde os dispositivos e usuários estão localizados, reduzindo a latência e o uso de largura de banda.

Além da latência, é necessário também resolver a questão da segurança dos dados. STE lida com dados realistas e sensíveis relacionados ao estado das unidades e suas armas, assim como seus pontos fracos. O vazamento desses dados para uma nação hostil poderia ter efeitos inimagináveis. A partir do momento em que o STE também depende de interoperabilidade com parceiros internacionais, a superfície de vulnerabilidades só aumenta. Para esse tipo de cenário, as Forças Armadas dos Estados Unidos já adotam um protocolo padrão conhecido como Zero Trust (“Confiança Zero”), que embute firewalls ao longo de toda a arquitetura do sistema. Entretanto, essa estratégia insere bloqueios no fluxo contínuo de dados dentro de um sistema, dificultando a habilidade do STE de operar em sua capacidade plena.

A expectativa das lideranças militares em 2020 era de que o STE entraria em fase operacional inicial em 2021 e completa capacidade operacional em 2023, mas estimativas mais recentes acreditam que a meta não será atingida até 2030.

Um Metaverso para mostrar o caminho

Metaversos comerciais ou criados para entretenimento não irão exigir uma representação fidedigna da realidade ou mesmo de sua física. Mark Zuckerberg foi ligeiro em mostrar que seus usuários terão liberdade para voar ou executar outras ações impossíveis de acontecer na vida real. Da mesma forma, metaversos especializados para determinados nichos (como o setor de saúde) irão trazer ambientes digitais com focos e necessidades diferentes.

Então, no que a existência do STE influencia o desenvolvimento de outros metaversos? Não apenas os militares podem mais uma vez abrir o caminho tecnológico para plataformas civis, solucionando antecipadamente questões técnicas que emergem de sua implementação, como eles também podem fornecer um Norte conceitual. A principal lição do STE é que o metaverso deve focar nos resultados práticos e não deve ser um “videogame”.

A interface do usuário é mais importante do que qualquer outra métrica, incluindo representação visual realista de objetos físicos e terreno. O STE visa aumentar a letalidade, não criar o videogame mais sofisticado. Se o treinamento virtual não se traduz em proficiência no campo de batalha, é, na melhor das hipóteses, uma perda de tempo

Jeremiah Rozman, analista de segurança nacional da Associação do Exército dos Estados Unidos

Da mesma forma que a ARPANET foi precursora da Internet, o STE pode ser uma representação em pequena escala do que pode ser um metaverso global baseado em código aberto, independente de marcas ou fabricantes, e descentralizado. O sucesso do STE irá mostrar que mundos digitais baseados em arquitetura de nuvem com propósitos práticos de treinamento, para resolver problemas do mundo real, podem ser economicamente viáveis e vitais para o desenvolvimento humano e não apenas um brinquedo social que emula interações que já são eficientemente realizadas no mundo físico.

Em sua forma atual, o metaverso da Meta não funciona como um complemento ou substituto satisfatório do grafo social, agindo, na verdade, como uma superfície adicional de atrito para as relações humanas, uma reprise de erros cometidos na época do Second Life. Porém, um metaverso baseado em aplicações profissionais pode superar a resistência inicial de um público que ainda vê a tecnologia como confusa ou um simples produto do marketing. O metaverso pode atuar não como substituto, mas como uma ferramenta adicional de evolução e aprendizado.

Nas palavras de Joe Parson, um especialista designado para a equipe multifuncional STE: “isso não quer dizer que isso substituirá completamente o treinamento ao vivo. Não há substituto para isso. Mas podemos dar opções aos comandantes, o que, por sua vez, aumenta sua prontidão. O STE tem tudo a ver com criar o maior número possível de oportunidades de treinamento”.