Imagem gerada artificialmente
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Jogos eletrônicos gerados por Inteligência Artificial: o futuro está aqui?

Na era dos deep fakes e das celebridades que não são reais, era só uma questão de tempo para o próprio processo de criação artística passar a ser dominado por algoritmos. Em setembro, uma imagem nascida de uma Inteligência Artificial conquistou o primeiro lugar em uma competição artística que deveria ser exclusiva para humanos. Foi o ponto de virada dessa Caixa de Pandora. As fronteiras entre a criatividade e a imaginação talvez tenham sido indelevelmente rompidas e os primeiros sinais de que isso também chegou ao mundo dos jogos eletrônicos já estão aqui.

Assim como o cinema, os games podem ser considerados como um coletivo audiovisual de experiências. Eles combinam imagens em movimento, efeitos sonoros, músicas, muitas vezes uma trama com começo, meio e fim e a própria mecânica interativa que faz a ponte entre o que está na tela e a vontade do jogador. Automatizar ou colocar na mão de Inteligências Artificiais todos esses fatores pode parecer uma tarefa impossível, mas, na verdade, algum grau de automação sempre esteve presente no desenvolvimento dos jogos.

Jogos com mapas aleatórios gerados proceduralmente existem por décadas. Já em 1982, a game designer Carol Shaw criou o clássico River Raid para a os videogames da época. A grande sacada da programadora foi desenvolver uma função que gerava o mundo em tempo real, sempre que o jogo estava em execução. Os mapas não foram criados à mão tampouco eram aleatórios, mas resultados de um algoritmo que fabricava os níveis durante a sessão de jogo.

Carol Shaw e sua cria: River Raid.

Conceitos similares foram sendo aprimorados ao longo dessas quatro décadas e ferramentas foram desenvolvidas. Se você acha que cada árvore de Skyrim foi “plantada” manualmente pelos desenvolvedores da Bethesda, a verdade é outra: foi empregado um algoritmo de distribuição de floresta, aprimorado até se conseguir o resultado desejado. Da mesma forma, Minecraft gera mundos gigantescos de forma matemática para cada jogador explorar e Alien: Isolation empregava recursos avançados de aprendizado de máquina para determinar o comportamento realista da criatura.

Entretanto, cada um desses sistemas foi um mecanismo na mão de seus desenvolvedores. O que acontece quando todo o conteúdo de um jogo é gerado artificialmente?

Essas garotas não existem

This Person Doe Not Exist foi um dos primeiros sites a mostrar o potencial disruptivo das tecnologias geradoras de imagem. Aparentemente, é um site simples: a cada reload, ele exibe a fotografia de uma pessoa. O detalhe é que essas pessoas, nenhuma delas, não importa quantas vezes você carregue a página, elas não existem no mundo real. Todas as imagens (em sua maioria extremamente convincentes) foram criadas através de uma GAN (generative adversarial network). São inclusive frutos de uma tecnologia que já está defasada há três anos, a tecnologia já evoluiu. Seus criadores lançaram projetos similares para gatos, cavalos e até obras de arte.

Claramente inspirado nessa iniciativa, surgiu o jogo This Girl Does Not Exist, disponível no Steam. De acordo com seus desenvolvedores, tudo no jogo foi gerado por Inteligências Artificiais: as imagens que ele utiliza, as sedutoras personagens, a trilha sonora, a história em si e até mesmo as vozes. Seus criadores apenas costuraram todos os elementos de forma coesa em torno de uma mecânica simples e publicaram na loja da Valve.

O jogo não causou alvoroço e tampouco tem recebido críticas positivas. Ironicamente, seu único defeito apontado está justamente na jogabilidade desenvolvida pelo casal de humanos responsável pelo estúdio. Em This Girl Does Not Exist, o jogador simula um relacionamento com seis jovens digitais, através de perguntas básicas e a solução de um quebra-cabeças. Jogos com mecânicas similares podem ser encontrados às dezenas no Steam e, certamente, muitos deles são frutos de programas que geram novos exemplares, apenas trocando os elementos. Se a própria criação dos elementos for artificial, estamos próximos do surgimento de uma fábrica automatizada de jogos.

O site Kotaku entrevistou os criadores de This Girl Does Not Exist e descobriu que o toque humano está muito mais presente na criação do que se imagina à primeira vista. O casal utilizou o poder do framework geracional Midjourney, porém foi necessária uma intensa curadoria para se chegar nos resultados desejados. O processo de tentativa e erro foi longo para se chegar nos inputs corretos que resultariam no conteúdo que se encaixaria na proposta do jogo. Uma vez que cada garota digital aparece em mais de uma pose, se mostrou um desafio repetir as iterações para se obter resultados diferentes, porém similares de cada “modelo”.

Eles acreditam que ainda há uma forte resistência do público em relação a conteúdo sintético. O jogo acabou se tornando o menos vendido do catálogo do estúdio. “Se eu fizesse um jogo de IA inteiro de novo, talvez eu tentasse dizer às pessoas somente depois que elas terminassem o jogo e ver quais seriam as reações, como eu acho que com This Girl, talvez as pessoas tivessem preconceitos no início”, revelou uma das desenvolvedoras na entrevista.

Aventuras infinitas

Com propostas menos ambiciosas, mas resultados melhores, existem pelo menos dois títulos no Steam que buscam substituir por uma Inteligência Artificial o mestre de jogo de um RPG: AI Roguelite e AI Dungeon. Ambos são mais modestos quando se trata no uso de imagens sintéticas, mas vão além em termos de narrativa e tentam emular a interação entre jogador e universo de jogo utilizando texto gerado por algoritmo, em tempo real.

Max Loh, criador de AI Roguelite, define sua obra como “o primeiro RPG baseado em texto do mundo onde cada local, NPC, inimigo, item e receita de criação é gerado completamente do zero por inteligência artificial”. O jogador apenas descreve o cenário inicial, digamos, por exemplo, “cidade submarina”. A partir daí, a IA cria usando GPT todas as características dessa civilização, desde seus habitantes e as armas que utilizam, assim como as aventuras que podem ser encontradas nesse mundo inicial. Não há estatísticas ou números, cada encontro, cada confronto é resolvido por dedução e descrição. A ideia é que o algoritmo seja inteligente o suficiente para saber se o jogador conseguiria derrotar um robô Exterminador usando um salmão cru, segundo a sinopse oficial no Steam.

Embora AI Roguelite seja baseado em texto, ele gera ilustrações utilizando o poder de processamento da GPU do usuário. Talvez esse seja o calcanhar de Aquiles da experiência, uma vez que o jogo demanda uma GPU de peso para as tarefas, com, no mínimo 8GB de VRAM. Mesmo assim, cada imagem pode levar até 60 segundos para ser criada. Existe um serviço de assinatura dentro do jogo que permite a utilização de computação na nuvem para a geração de imagens, um sinal claro de que a ferramenta ainda não está totalmente acessível para ser empregada em jogos em tempo real. Entretanto, com os saltos evolutivos que a tecnologia dá, é evidente que podemos estar vendo o futuro dos gráficos em jogos eletrônicos.

AI Dungeon foi lançado no Steam em 2021 e se tornou um sucesso sólido de nicho. Segundo seus desenvolvedores, “você pode direcionar a IA para criar mundos, personagens e cenários para o seu personagem interagir. Você pode liderar um exército lutando contra uma invasão alienígena, ser um detetive mítico investigando a tentativa de assassinato da rainha das fadas ou simplesmente desfrutar dos prazeres de um cenário simples de vida”. Seu escopo é surpreendentemente amplo, através de um modelo geracional de linguagem batizado de Griffith, que roda na nuvem.

O grande diferencial que ajudou a popularizar o AI Dungeon é que ele não exige um computador potente, uma vez que sua carga de processamento é executada em servidores remotos. Para a geração de imagens, ele utiliza os serviços terceirizados do Stable Diffusion e o jogador que comprar o jogo recebe créditos para a plataforma externa, portanto, o recurso não é ilimitado e exige uma assinatura depois do fim dos créditos. Existem versões gratuitas do jogo para mobile e para a web, mas são sustentadas com publicidade.

As duas iniciativas de RPG parecem apenas arranhar a superfície do que pode ser obtido. O conteúdo é gerado em tempo real, mas exige processamento parrudo. Com a redução de custos, um modelo de assinaturas ou mesmo um modelo freemium, soluções desse tipo podem surgir até entre os jogos classificados como AAA. Um gerador de missões baseado em Inteligência Artificial pode sustentar um MMORPG infinitamente e a vindoura criação de elementos 3D sintéticos pode alavancar ainda mais essa indústria ou dar início a uma fusão com um metaverso, que poderia ser até mesmo customizado para cada usuário.

A morte do autor?

Seja funcionando como instrumento de criação para facilitar o trabalho de desenvolvedores, seja como ferramentas em tempo real que colocam o poder nas mãos do jogador, as Inteligências Artificiais invadiram os jogos eletrônicos de forma irreversível. O mito da “democratização da produção de conteúdo” talvez não seja tão irreal assim, mas palpável e apenas a alguns gigabytes de ser atingido.

Ou podemos viver a alvorada do fim do autor, em que corporações colossais com parques de processamento gráfico assumem a produção de títulos em escala industrial. A imagem de Carol Shaw usada no quarto parágrafo desse texto, segurando o jogo que criou sozinha em suas mãos, pode se tornar um memento do passado tão anacrônico como o próprio conceito de mídia física vai se tornando.