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O “pior emprego de tecnologia do mundo”: moderador de comentários

Qualquer pessoa que já deu uma olhada na seção de comentários de qualquer grande portal ou jornal levou um choque: discurso de ódio contra minorias, ataques políticos dos dois lados, pseudo-ciência, fanatismo religioso de todos os espectros, xingamentos, gente querendo aparecer. É uma zona onde o spam acaba se tornando o conteúdo menos nocivo.

Essa é uma realidade que não é exclusiva do Brasil e muitos já consideraram a moderação de comentários como o pior emprego de tecnologia do mundo.

Mas não Marc Burrows. Por cinco anos, ele trabalhou na linha de frente do pior e do melhor que a internet pode oferecer, moderando comentários do site do jornal britânico The Guardian. Ele viu mensagens que poderiam levar ao desespero, viu ataques de grupos organizados (inclusive patrocinados por outros países), viu o ódio e a insanidade de perto. Mas não desiste de acreditar que a seção de comentários, aquilo que começa depois de uma linha divisória no final de um artigo, é uma zona muito importante para a saúde da web.

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Para defender aquilo que muitos julgam indefensável, Burrows escreveu um artigo no The Guardian. Um artigo que já acumulou mais de 1.300 comentários.

Agendas, Trolls e Madrinhas de Casamento

A despeito do que muitos possam imaginar ou acusar, moderação de comentários não é impor a agenda do veículo para cima de seus visitantes. É impedir que a agenda dos visitantes se imponha ao veículo nos lugares errados. Um bom moderador, segundo Borrows não deve permitir que a conversação seja arruinada. Um artigo sobre chapéus não pode ser derrubado por alguém que simplesmente odeia moda e claramente não pertence àquela área, assim como não faz sentido alguém comentar sobre a fome na África em um artigo sobre o tratamento de câncer. E todos nós já vimos esse tipo de comentarista: aquele que não lê a matéria, não se importa com o tema, mas deseja apenas um espaço para espalhar suas ideias, seu preconceito, sua opinião sobre um assunto fixo, ou seja, sua agenda. Eles não estão interessados em conversar, mas em converter, ou apenas gritar aos quatro ventos.

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Nesse sentido, Borrows cita o exemplo de um troll em “uma discussão sobre a necessidade de vozes femininas em Hollywood, um leitor que comentou que forças econômicas indiscutíveis estavam por trás da falta de mulheres na indústria, estabelecendo que ‘filmes de mulheres’ não fazem dinheiro realmente e por causa disso ‘Missão Madrinha de Casamento não foi um sucesso comercial’. Missão Madrinha de Casamento faturou 288 milhões de dólares no mundo todo e foi indicado para 2 Oscars, 2 Baftas e 2 Globos de Ouro. Um sucesso por qualquer parâmetro. Nosso troll com agenda (possivelmente homem) aparentemente não tinha visto o filme e não tinha prestado atenção no seu sucesso por que ele não se importa. Ele não conhecia ninguém mais que tivesse visto tampouco, então ele assumiu que ninguém tinha visto. Ele pegou sua perspectiva e usou para preencher as partes do mundo que ele não conhece”. Um típico caso de viés de confirmação baseado em uma câmera de eco.

Contra trolls, com ou sem uma agenda clara, não há muito o que fazer. Eles estão ali para tentar perturbar o debate, para ver o mundo pegar fogo, usam CAIXA ALTA em suas mensagens e não podem ser convencidos de que seu ponto de vista pode estar equivocado já que acreditam estar em uma batalha (ou cruzada). Para o moderador, eles são um veneno que pode contaminar toda a discussão.

- Você está vindo pra cama?- Eu não posso. Isso é importante. - O quê? - Alguém está errado na internet. (originalmente publicado em https://xkcd.com/386/)

– Você está vindo pra cama?

– Eu não posso. Isso é importante.

– O quê?

– Alguém está errado na internet.

(originalmente publicado em https://xkcd.com/386/)

Comentaristas Profissionais, Política e a Crise dos Refugiados

O troll nem sempre é um indivíduo solitário destilando suas frustrações ou preconceitos no anonimato da web. Burrows aponta que frequentemente eles se agrupam. No Brasil, uma reportagem recente da Época revelou a perturbadora ação de gangues virtuais que se vangloriam de ataques racistas e que agem para chamar a atenção e disputar “fama” na seção de comentários e nas redes sociais.

Mas o moderador do The Guardian também aponta a ação de comentaristas organizados por bandeiras políticas e até mesmo operando a soldo de nações estrangeiras. Na experiência de Burrows, países como Rússia e Coreia do Norte possuem equipes inteiras focadas para disseminar uma imagem positiva de seus governos ou para combater pontos de vista contrários aos praticados em seu território. “A maioria dos comentaristas sobre política externa russa não são operativos pagos, mas os poucos que são causam problemas reais”. Para partidos e governos, a seção de comentários se torna um novo front de uma guerra pelo coração e mentes de usuários, uma versão 2.0 da propaganda política.

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O resultado disso, novamente, é um debate contaminado. Com a ação de grupos organizados, a desconfiança começa a se instalar entre os comentaristas legítimos. Acusações começam a fluir de ambos os lados e não se sabe mais quem está disseminando uma opinião por acreditar nela ou por estar sendo pago para fazê-lo. No frigir dos ovos, todos perdem. Quem não viu ou ainda está vendo isso acontecer agora mesmo no Brasil?

Entretanto, a pior experiência narrada por Burrows aconteceu durante a crise dos refugiados, quando milhares de imigrantes saíram de países em conflito no Oriente Médio para tentar uma chance de vida melhor na vizinha e rica Europa. Segundo o moderador, “em cinco anos de moderação no The Guardian, eu nunca tinha visto um tema trazer à tona tanta falta de empatia e provocar tanta reação impulsiva, emotiva e raivosa, e eu nunca achei uma história tão difícil de se trabalhar”. Mesmo em matérias favoráveis aos refugiados, em relatos de horror sobre suas jornadas arriscadas, doía ler comentários como “deixe que se afoguem”.

Comentários, Sim

Nesse tempo que Marc Burrows trabalhou moderando comentários, o The Guardian cresceu para 100 milhões de visitantes mensais e atingiu um pico de 70 mil comentários por dia. O nível do debate não subiu ou caiu, na opinião dele, mas a quantidade se tornou o problema quando o fluxo era impossível de gerenciar. Apesar dos pesares, em nenhum momento Burrows se esqueceu de um detalhe importante: cada um deles foi escrito por um ser humano, “pessoas reais, trabalhando, passando o tempo, ou mesmo pedindo por ajuda”. Essa certeza também tornava mais dolorosos os comentários cruéis.

Mais de uma vez, Burrows ouviu a recomendação: “não leia os comentários”. Mas ele defende que eles são um fator importante para o jornalismo, para o mundo. “Como jornalistas deveriam aprender de seus leitores? Como eles deveriam saber se cometeram erros se eles se recusarem a olhar o feedback? Seria uma grande vergonha se as mensagens importantes que os jornalistas precisam ouvir não estiverem passando por causa de desordeiros com agendas venenosas”.

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Há vozes dentro do The Guardian que argumentam que essa batalha já foi perdida e que a melhor solução é desativar por completo a seção de comentários, deixar os trolls fenecerem sem seu alimento.

Mas Burrows discorda: “há muita coisa boa abaixo da linha, tanta perspicácia e bobagem, tanta gloriosa irreverência e tanto conhecimento. Não. A conversação precisa se tornar melhor. Nós precisamos melhorar comportamentos. Sites de notícias como o The Guardian devem aos seus leitores fazer isso direito, porque quando funciona, isso realmente funciona. No The Guardian, milhares de pessoas gastam todos os dias utilizando a plataforma para discutir as notícias do dia e a vasta maioria dessas discussões vale a pena acontecer. Eu não estou argumentando contra a argumentação. Nós deveríamos ter debates, até mesmo os extremamente acalorados (…) isso significa blindar-nos das coisas ruins e ignorá-las”.

E conclui, desafiando a opinião geral: “eu trabalhei como moderador no The Guardian por cinco anos. Não é o ‘pior trabalho do mundo’. É o melhor que eu jamais tive”.