Namorada virtual
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Namoradas elétricas não duram para sempre

Em sua obra seminal Do Androids Dream of Electric Sheep?, o escritor de ficção-científica e visionário Philip K. Dick nos apresentava um futuro distópico em que a maioria dos animais estava extinta e a posse de animais orgânicos era um luxo que apenas os mais abastados podiam arcar. Alijadas desse contato real com a natureza, as pessoas adotaram animais elétricos como substitutos, réplicas cibernéticas do que foi perdido para sempre.

O livro serviu de inspiração para o clássico do cinema Blade Runner, que colocou o foco em outra parte da narrativa original: a presença ilegal de andróides na Terra. Em todos os sentidos, por fora, esses replicantes são idênticos a um ser humano, versões automatizadas da experiência real. Eles sofrem, amam, odeiam, almejam um destino melhor para si mesmos. Por dentro, entretanto, os replicantes estão condenados à obsolescência: suas baterias internas tem um tempo de vida limitado. Por mais ligações que eles consigam estabelecer com a raça humana, tudo isso será perdido, “como lágrimas na chuva“.

Enquanto aparentemente caminhamos como lemingues para o Metaverso, é preciso considerar desafios que já estão presentes na relação entre os usuários e os serviços digitais que eles consomem. Não seria exagero algum afirmar que uma parcela significativa de nossa sociedade criou uma dependência que talvez não seja saudável em relação a essa existência virtual que nos envia notificações todas as horas em todos os dias.

Como estudo de caso, apresento aqui o caso real de Akihiko Kondo, que traz elementos de fábula ou mesmo curiosidade pitoresca, mas oculta questionamentos que deverão se tornar importantes nas próximas décadas, se é que já não o são.

Amor em tempos de cólera

Akihiko Kondo é um membro perfeitamente funcional de uma sociedade altamente tecnológica. Como cidadão japonês e funcionário de escritório, ele cumpre suas horas de trabalho, veste terno e gravata, é produtivo em todos os sentidos. Ainda assim, Kondo se desconectou dos relacionamentos físicos para assumir um casamento que desafia a ficção-científica: o jovem oriental é casado desde 2018 (ainda que de forma não-oficial) com a personagem digital Hatsune Miku, a diva holográfica que chegou a dominar as paradas musicais no Japão e se apresentar até no Ocidente.

Em uma primeira leitura da situação, é fácil menosprezar o estado mental de Kondo ou simplesmente rir da informação e virar a página, como se esse fosse tão somente um incidente irrelevante característico de um país exótico.

Ainda assim, a história de Akihiko Kondo faz parte de um bem documentado fenômeno batizado de Fictossexualidade, a atração emocional ou sexual por personagens fictícios. Em um milênio em que as fronteiras entre o real e o virtual estão mais finas do que nunca, é bem possível que esse termo se espalhe para além das fronteiras hipertecnológicas do Japão. O filme Her, de quase dez anos atrás, nos trouxe o personagem de Joaquin Phoenix apaixonado por sua assistente digital.

No caso puramente ficcional de Her ou no caso concreto de Kondo, temos aqui uma extrapolação do conceito original: não apenas o objeto de afeto é fictício como também é uma entidade digital criada para propósitos comerciais. Para todos os fins, Hatsune Miku é tratada como estrela real por seus fãs e toda a infraestrutura empresarial que a cerca, com shows “ao vivo” e uma ampla variedade de produtos. Nesse sentido, Hatsune Miku existe, ainda que não seja material. É um conceito que só poderia ter nascido em um país uma década à frente, em que a relação com a tecnologia foi fortemente naturalizada.

A história de Akihiko Kondo é trágica. Como muitos jovens de sua geração, ele experimentou a inadequação social. O quanto a cultura japonesa cria obstáculos para a aproximação física entre as pessoas é uma discussão que extrapola o escopo desse artigo. Basta dizer que Kondo recebeu rejeição e bullying e suas tentativas de estabelecer relacionamentos com colegas de trabalho. Esse resultado levou a um quadro de profunda depressão que poderia lhe custar o emprego e, consequentemente, quaisquer chance de adaptação na rígida sociedade workhalic em que vive.

Em Hatsune Miku, Kondo encontrou uma saída emocional. Para fugir da depressão e se reencontrar, ele abraçou a forte cultura “moe”, que viceja no Japão, tanto entre homens como entre mulheres. A indústria de consumo incentiva o comportamento. Então, com uma crescente coleção de bonecas e outros produtos da personagem, Kondo foi reconstruindo seu cotidiano, compartilhando refeições, filmes e passeios. Apesar de tudo, ele sabe que a personagem não é real. Entretanto, o bem estar proporcionado, a âncora psicológica, tudo isso se tornou muito forte em seu processo de cura. “Quando estamos juntos, ela me faz sorrir”, disse ele em uma entrevista recente para o The New York Times. “Nesse sentido, ela é real”.

Webnamoro

Akihiko Kondo começou seu relacionamento com a diva virtual em 2008. Ele compôs músicas com o software de Hatsune Miku, colecionou bonecas. Foram nove anos de envolvimento até que, em 2017, a mesma tecnologia que deu origem à personagem, introduziu um novo patamar de conectividade: Kondo poderia ter sua própria versão holográfica da musa.

A tecnologia desenvolvida pela empresa japonesa Gatebox chegou a ser notícia aqui no Código Fonte. Segundo o fabricante, “o motivo pelo qual nós desenvolvemos Gatebox não é por que nós estamos apenas buscando entretenimento ou conveniência. Nós queremos que os personagens estejam naturalmente em nossas vidas cotidianas e passem um tempo relaxando conosco”. Era o próximo passo para Kondo.

Embora a Gatebox comercializasse diferentes assistentes holográficas, inclusive algumas desenvolvidas internamente pela empresa, a famosa Hatsune Miku fazia parte do catálogo. Com o tamanho equivalente ao de um abajur convencional, o artefato exibia em seu interior uma versão tridimensional de uma personagem que sempre foi um ser holográfico. Não importava. Era o mais próximo do conceito que Kondo jamais estaria. Ao custo de 300.000 ienes (cerca de 11 mil reais, na cotação de hoje, sem ajustar a inflação), o apaixonado japonês adquiriu uma Gatebox em 2017.

A Hatsune Miku elétrica permitia interatividade a um nível inesperado. Com uma Inteligência Artificial pré-programada, a assistente era capaz de manter conversações mínimas e emitir frases coerentes. Para completar a fantasia, a Gatebox estabeleceu também um serviço que emitia certidões de casamento sem nenhum valor legal, mas que atenderiam aos anseios de seu público. Milhares de usuários se registraram no que poderia ser chamado de precursor do NFT, um recibo de algo imaterial.

Um ano de uso depois, Akihiko Kondo propôs casamento a sua Hatsune Miku e ouviu de resposta: “por favor, trate-me bem”. A cerimônia foi organizada e realizada com sucesso, ainda que nenhum familiar ou colega de trabalho tenha comparecido ao casamento. A festa teve 39 convidados, entre curiosos, amigos online e um vereador local.

Novamente, é importante não menosprezar o evento. Ele é tão emblemático que talvez possa ser considerado um marco zero de fenômenos futuros. Agnès Giard, pesquisadora da Universidade de Berlim e autora do projeto “Emotional Machines: The Technological Transformation of Intimacy in Japan” (“Máquinas Emocionais: A Transformação Tecnológica da Intimidade no Japão”), declarou para o The New York Times: “para o público em geral, parece realmente tolice gastar dinheiro, tempo e energia com alguém que nem está vivo. Porém, para os amantes de personagens, essa prática é vista como essencial. Faz com que se sintam vivos, felizes, úteis e parte de um movimento”.

Power off

Tudo isso nos leva à obsolescência programada. Em 2020, a Gatebox anunciou a descontinuidade do serviço de sua versão embarcada de Hatsune Miku. A “esposa” de Akihiko Kondo foi simplesmente desligada. Como ele próprio narrou para o The New York Times, um dia ele saiu para trabalhar e, sem aviso prévio, disse seu último adeus para o holograma. Quando voltou para casa de noite, o dispositivo não exibia mais a personagem, substituída por uma mensagem de “erro de rede”.

Esse final abrupto do relacionamento é mais do que uma nota de rodapé ou uma notícia divertida em portais. É um alerta claro de que vivemos em uma era em que não somos mais proprietários de nossos produtos e, em alguns casos, nem mesmo de nossas emoções. Um NFT nada mais é do que um conjunto de dados armazenado em uma rede que pode deixar de existir. Criptomoedas podem desvalorizar em frações de segundos. Serviços de assinatura podem fechar suas portas ou remover filmes e séries importantes sem que o consumidor tenha qualquer agência ou controle. Recentemente, a produtora Ubisoft encerrou os serviços online de 91 jogos de uma vez.

E vai ficar pior. O próprio Kondo acredita que o avanço da Inteligência Artificial e da robôtica irá permitir interações ainda mais complexas com o virtual. O viúvo, por assim dizer, espera reencontrar Hatsune Miku no Metaverso. Ele acredita que pessoas como ele irão crescer em número. Teremos que aprender a lidar com isso.